Cada vez mais raros no comando de equipes, técnicos negros, como Lula
Pereira, enfrentam desemprego e levantam a voz contra suposto racismo no alto
escalão do futebol
Lula Pereira / Crédito: Drawlio Joca
Pernambucano, Lula Pereira viveu infância pobre em Olinda, embora gravitasse em
torno de uma família de boleiros. O pai, ele só “conheceu” aos 15 anos,
folheando um exemplar de PLACAR de 1971, em que o progenitor aparecia perfilado
com o time do Jequié, da Bahia. Inspirado no tio, um ex-goleiro do Fluminense,
Lula vingou como zagueiro. Defendeu Santa Cruz, Sport e Ceará, onde parou de
jogar aos 30 anos e ganhou sua primeira oportunidade como treinador. Antes de a nova carreira decolar, fez estágios no Barcelona, Milan e Ajax.
Depois, estamparia 17 clubes no currículo, incluindo o Flamengo. Contudo, seu
último trabalho durou menos de um mês. Foi demitido do Ceará após quatro
vitórias, um empate e uma derrota. Hoje, aos 56 anos, ele acredita que os 12
meses de ostracismo não estão relacionados à competência, mas sim à cor de sua
pele. “Já ouvi de empresários: ‘O pessoal do clube gostou do seu perfil, mas,
me desculpe, você é preto’”, conta, sem se resignar com a crueza dos cartolas.
Técnicos negros, de fato, estão à margem da elite do futebol nacional.
Apesar de todas as cinco formações da seleção brasileira que venceram a Copa do
Mundo contarem com pelo menos cinco jogadores negros, apenas o ex-meia Didi
construiu carreira notável como treinador. O cenário permanece estável. Não há
um negro no banco dos times que disputam os campeonatos Paulista e Carioca
deste ano, os principais estaduais do país. Entre os 40 técnicos que terminaram
as séries A e B do último Brasileiro, somente Anderson Silva, do Ceará, era
negro. Ele liderou o time como interino nas últimas rodadas da segunda divisão
e, ao fim da competição, retornou ao posto de auxiliar.
QUEBRA-GALHO
Era 2009 quando o ex-volante Andrade sagrou-se o primeiro técnico negro
campeão brasileiro. Como em outras quatro ocasiões, ele havia assumido
provisoriamente o Flamengo, no meio do campeonato. Foi efetivado e levou o
rubro-negro ao hexa, mas acabou mandado embora cinco meses depois, com 70% de
aproveitamento.
Para Lula Pereira, o negro é visto como “tampão” pelos clubes. “Andrade não
foi o escolhido do Flamengo. Foi um acaso, uma solução temporária. Só assim que
técnicos negros têm chance.” No caso de Andrade, mesmo após a efetivação e o
título, seu salário era quase 20 vezes inferior ao de outros técnicos de ponta,
como Vanderlei Luxemburgo. Com breves passagens por Brasiliense, Paysandu e
Boavista, ele, que já afirmou ter sido discriminado no ramo, está sem emprego
desde maio de 2012.
Situação semelhante à de Cristóvão Borges, que passou de auxiliar a técnico
devido ao AVC sofrido por Ricardo Gomes em agosto de 2011. Antes de ser
efetivado, no começo do ano passado, ele guiou o Vasco ao vice-campeonato
brasileiro e, já em 2012, às quartas de final da Libertadores. Cobrado pela
torcida, não resistiu à queda de produção do time e deixou São Januário em
setembro. “Quando o Cristóvão saiu do Vasco, eu disse que ele dificilmente
conseguiria emprego em outro grande clube brasileiro”, conta Cláudio Adão,
ex-técnico de Volta Redonda e CSA-AL.
Sem oportunidades como treinador, Adão virou instrutor de atores que encenam
jogadores de futebol na TV e no cinema, apesar de não ter abandonado o desejo
de dirigir um clube profissional. “Infelizmente, o negro é tratado como
analfabeto no futebol”, diz. A discussão sobre o suposto racismo ainda é tabu
nos vestiários. Por meio de sua assessoria, Cristóvão Borges afirmou que não se
sente à vontade para falar sobre o tema enquanto estiver desempregado.
Serginho Chulapa dirigiu o Santos, de Marcelinho Carioca, em
2001. “Tive minha chance, mas não deu certo por causa de uns ‘probleminhas’
extracampo”, diz. / Crédito: Alexandre Battibugli
Segundo ele, entretanto, o período sabático é opção própria, pois teria
recusado propostas a fim de atualizar conceitos e esperar uma oferta que
represente maior projeção. Para Serginho Chulapa, ex-técnico e auxiliar do
Santos, a ausência de treinadores negros na elite não é fruto de preconceito.
“Existem grandes ex-jogadores negros com capacidade para treinar. Mas falta
interesse do negro. Se não se preparar, não vai ter espaço.”
MERCADO SEM NEGRO
De acordo com o último Censo do IBGE, a população brasileira era composta em
2010 por 7,6% de pessoas que se declaram negras e 43,1% pardas. No futebol, o
percentual de negros é maior. Em 1996, o Censo PLACAR registrou, entre os 264
jogadores dos 24 clubes da primeira divisão, 79 negros (30%). Atualmente, a
maioria deles está aposentada dos gramados. Nenhum, porém, figura no comando de
um time de expressão. “A questão do treinador negro é reflexo da nossa
sociedade. Tirando o Joaquim Barbosa [presidente do Supremo Tribunal Federal],
não há outro negro em evidência tomando decisões no Brasil”, diz o ex-zagueiro
Roque Júnior, que pretende iniciar trajetória como técnico. “O futebol reproduz
a divisão social do trabalho no país. O viés de preconceito é uma barreira para
o negro chegar tanto à direção de uma empresa como de um time”, afirma Luiz
Carlos Ribeiro, professor da Universidade Federal do Paraná e mestre em
história social do futebol.
Segundo pesquisa de 2011 do Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade),
somente 9,6% dos executivos em cargos de direção e gerência na região
metropolitana de São Paulo eram negros — incluindo pardos. Proporção inferior à
de negros, como Roque Júnior e o ex-meia-atacante Paulo Isidoro, que fizeram o
curso de formação de treinadores da CBF no ano passado: oito entre 47 alunos
(17%). “O negro leva desvantagem no mercado de trabalho por causa da
desigualdade social, que influi na falta de qualificação. Na esfera do técnico
de futebol, embora a função imponha exigência intelectual, o preconceito é
latente, já que a maioria dos técnicos brancos também é composta por
ex-jogadores que vieram de camadas pobres da população”, diz Ribeiro. Lula
Pereira vai além. “Luxemburgo é negro? Joel Santana? Não. São mulatos. Negro
sou eu, Lula Pereira.”
Em sua visão, a dificuldade em se recolocar no mercado é agravada pela
escassez de negros na gestão do futebol. “Não temos dirigentes ou presidentes
de clubes e federações negros. Assim é impossível romper a segregação e as
barreiras que enfrentamos”, diz Lula.
BANCO DE COTAS
Desde 2003, a NFL, liga de futebol americano dos Estados Unidos, adota o
sistema de cotas raciais. Pela Regra Rooney, todas as franquias são obrigadas a
entrevistar negros para os cargos de técnico e coordenador. Após a adoção da
medida, o número de negros dirigindo equipes na NFL dobrou. No entanto, na
temporada atual, nenhum afrodescendente foi contratado para as 15 vagas de
comando disponíveis, o que tem motivado discussões em torno da necessidade de
mudanças na regra.
Cláudio Adão: técnico do CSA-AL, em 2001 / Crédito:
Marco Antonio
No Brasil, a instituição das cotas raciais no futebol ainda
não é cogitada pela CBF, mas gera controvérsia. “Em um meio mercantilista e
liberal como o futebol, o sistema de cotas seria inócuo e impraticável, não
funcionaria”, diz Luiz Carlos Ribeiro. “É impossível obrigar um clube a contratar
negros.” Lula Pereira discorda. “Nós, negros, vamos precisar de cotas, através
de uma lei federal, como já existe nas universidades, para trabalhar no
futebol.”
Por outro lado, há quem conteste que a escolha de profissionais pelos clubes
leve — ou deva levar — em conta a cor da pele. “Eu nunca tive problema [com
racismo]. Ser técnico é difícil para qualquer pessoa. É uma profissão de muita
rotatividade e pouca estabilidade”, afirma o gaúcho Valmir Louruz, técnico com
passagens por Internacional e Juventude. Para Serginho Chulapa, a falta de
comandantes negros nos clubes de ponta é “uma coincidência. Não existe
preconceito, mas sim uma preguiça do negro. O convite não vai chegar em casa.
Não adianta fazer movimento. A classe [dos técnicos] é desunida”.
Roque Júnior, por sua vez, defende as cotas como solução paliativa e,
sobretudo, uma cultura de inclusão racial. “Na época dos meus pais, os negros
tinham baixa autoestima, se sentiam oprimidos e ficavam estagnados. Hoje nos
preparamos mais, corremos atrás das oportunidades, mas elas não aparecem. Ainda
existe um racismo velado não só no futebol, mas em toda a sociedade.”
Enquanto as cotas não saem da prancheta, os negros seguem sem representantes
no topo da pirâmide da bola que possam virar o jogo. “Eu estou à toa em casa,
não consigo trabalhar. Cadê o Cristóvão? Cadê o Andrade? É inadmissível que o
Brasil, o país da miscigenação, não tenha um negro à frente de um clube
grande”, diz Lula Pereira, à espera de propostas que não sejam rebocadas por
pedidos de desculpa.
COMANDO NEGRO
Eles alcançaram o topo, mas não a alta patente da profissão
Cristóvão Borges / Crédito:
Reprodução
Cristóvão Borges
Após problema de saúde de Ricardo Gomes, assumiu o Vasco e ficou pouco mais
de um ano no cargo. Perseguido pela torcida, sofreu até ofensas racistas em São
Januário.
Gentil Cardoso / Crédito: Reprodução
Gentil Cardoso
Único negro a dirigir a seleção brasileira, ainda que por somente cinco
jogos, em 59, guardou mágoa por não ter trabalhado em nenhuma Copa: “Não fui
chamado porque sou preto”.
Didi / Crédito:
Rodolpho Machado
Didi
Bicampeão mundial como jogador, teve as principais chances na carreira de
técnico fora do Brasil. Em 1970, conduziu a seleção peruana às quartas de final
da Copa do Mundo.
Valmir Louruz / Crédito: Reprodução
Valmir Louruz
No Juventude, conquistou a Copa do Brasil de 99. Trabalhou no Kuwait e no
Japão. “Poucos negros se aventuram, mas nunca tive barreiras como técnico”,
diz.
Andrade / Crédito: Daryan Dornelles
Andrade
Antes do Brasileiro com o Flamengo em 2009, foi auxiliar de nove técnicos.
Segundo Júnior, ex-gerente de futebol do clube, ele sofria preconceito de
outros dirigentes.
Chulapa / Crédito: Mauricio de Souza
Chulapa
Maior artilheiro da história do São Paulo, esteve à frente do Santos por
quatro vezes, sendo duas delas como interino. Auxiliar até 2009, hoje integra o
máster do Peixe.
Lula Pereira / Crédito: Reprodução
Lula Pereira
Campeão estadual dirigindo o Ceará, do Mineiro, pelo América, do
Catarinense, pelo Figueirense, e da série B, pelo União São João, está
desempregado há um ano.
O DEDO DE FELIPÃO
Felipão e Roque Júnior / Crédito:
Reprodução
Técnico da seleção apoia incursão de negros no mercado
Quando saiu do Palmeiras, em 2000, e do Cruzeiro, em 2001, Luiz Felipe
Scolari indicou Lula Pereira para substituí-lo. Os clubes não o contrataram,
mas o Flamengo, em 2002, apostaria no endosso de Felipão, que começou a
carreira em 1982 depois de receber o bastão de Valmir Louruz no CSA-AL.
Além de Lula, Scolari chancelou a contratação de César Sampaio como
dirigente no Palmeiras e, logo em sua apresentação no retorno à seleção, em
novembro do ano passado, fez o filme do pupilo Roque Júnior. “Ele está se preparando
e será um ótimo técnico”, disse.
Pentacampeão do mundo com Felipão, o ex-zagueiro tem se dedicado à leitura
de livros de tática e a estágios em equipes do Brasil e do exterior, além de já
ter feito curso de treinador e um MBA em gestão esportiva. “Felipão me dá
forças, é um incentivador. Ele sabe como é difícil um técnico negro ser
aproveitado em grandes clubes”, afirma Roque.
“Tenho o objetivo de comandar a seleção. Se a oportunidade aparecer, eu
estarei bem preparado.”
ÁFRICA BRANCA
Negros foram minoria na Copa Africana
Das 16 seleções que disputaram a Copa Africana de Nações deste ano, sete
foram lideradas por técnicos nascidos no continente. Apenas quatro eram negros,
incluindo o campeão pela Nigéria, Stephen Keshi. Desde 1992, um técnico negro
não vencia a CAN. “Os [técnicos] brancos vêm à África só por dinheiro. Eles não
fazem nada que nós [negros] não possamos fazer”, disse Keshi.
Em 2005, ele classificou Togo para sua primeira Copa do Mundo. Entretanto,
perdeu o lugar para o alemão Otto Pfister.
AFRICANOS - 7
Stephen Keshi (Nigéria)
James Kwesi Appiah (Gana)
Sewnet Bishaw (Etiópia)
Ulisses Indalecio Antunes (Cabo Verde)
Sami Trabelsi (Tunísia)
Rachid Taoussi (Marrocos)
Sabri Lamouchi (Costa do Marfim)
ESTRANGEIROS - 9
Gordon Igesund (África do Sul)
Gustavo Ferrin (Angola)
Patrice Carteron (Mali)
Paul Put (Burkina Fasso)
Gernot Rohr (Níger)
Claude Le Roy (Congo)
Hervé Renard (Zâmbia)
Vahid Halilhodzic (Argélia)
Didier Six (Togo)
Por Breiller Pires, da PLACAR 29/03/2013
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