Clubes sociais negros resistem ao tempo para preservar memória afrodescendente no RS
Na prateleira em madeira rústica, um
vidro preserva o estandarte com a imagem do pierrô de fantasia azul e
branca. Na parede, um quadro com o Zumbi dos Palmares desenhado à mão.
Em cima do armário, toda a coleção de troféus adquiridos nas vitórias do
carnaval desde a década de 1920. Este é o Clube Social Negreiro
Pelotense Fica Ahi pra ir Dizendo, de onde surgiu a primeira escola de
samba do Rio Grande do Sul. A memória da fundação, em 27 de janeiro de
1921, está preservada em painéis nas paredes do salão que até hoje
abriga bailes para a comunidade negra da cidade e região.
O presidente do Clube Fica Ahi, Raul Ferreira, conta que após o
sucesso do bloco no carnaval de Pelotas, o grupo decidiu fundar um clube
social. “Como não tinham local para a reunião de fundação do clube,
colocaram um cidadão na praça em frente à Prefeitura e disseram para
ele: ‘fica ai pra ir dizendo onde é a reunião’. E assim nasceu o nome do
clube”, afirma.
Como carnaval de rua era popular e os festejos em clubes
considerados ‘elitizados’, houve divisão entre os frequentadores do
clube e a escola de samba se separou. Hoje, a Academia do Samba não tem
mais relação com o Fica Ahi. Das quermesses e festivais, só restam fotos
nas paredes de um dos espaços da entrada do prédio.
O local pelo qual já passou Ângela Maria, Leci Brandão e outros artistas
representantes da negritude brasileira abriga também a única biblioteca
de literatura exclusivamente negra no país. A Biblioteca Negra de
Pelotas abriga cerca de 400 títulos adquiridos por doações. “O professor
Uruguay Cortazzo sentiu falta da bibliografia negra e adquiriu os
primeiros exemplares para trabalhar no grupo de estudos negros da
Universidade Federal de Pelotas, o Sangoma”, explica a professora de
História Maria Tereza Barbosa.
24 de Agosto
Primeiro clube de integração entre brancos e negros nasceu em Jaguarão
Cerca de 140 quilômetros de distância do Fica Ahi, na cidade de
Jaguarão, outro clube é marco de resistência da cultura negra no estado.
Com 95 anos, o 24 de Agosto leva o nome da data de sua fundação, no ano
de 1918. O número 24 também simboliza a quantidade de homens que
iniciaram encontros para socializar na no século em que a discriminação
racial fazia uma radical segregação na cidade. “Só os brancos iam para
os clubes socializar. Negros e pobres não podiam. Então, 24 homens
começaram a se encontrar e decidiram fundar um clube”, conta o atual
presidente, Nei Madruga.
O que poderia ser uma revanche foi o maior gesto de pacificação da
época. Quando abriu as portas como clube social, o 24 de Agosto passou a
ser o primeiro local de integração entre brancos e negros. “Tínhamos um
verdadeiro apartheid aqui. Mas acreditamos que é importante a presença
das duas raças, até para sobrevivência do clube. Não vivemos apenas da
economia dos negros”, ressalta seu Madruga.
Os dois clubes negreiros situados na metade sul do estado foram
contemplados no edital de pontos de cultura do Governo estadual e
receberão recursos da Secretaria Estadual de Cultura. Ambos tombados
como patrimônio histórico imaterial, os espaços serão restaurados e
poderão preservar a cultura dos afrodescendentes do sul do país.
“Dos 82 pontos de cultura do último edital, quatro são clubes negros.
Temos também pontos de cultura em assentamentos, comunidades indígenas,
locais de hip hop, enfim, queremos valorizar a diversidade do nosso
estado”, diz o secretário estadual adjunto de Cultura, Jeferson
Assumção.
Um total de R$ 18 milhões está sendo investido nesta etapa. Em
outubro, haverá abertura de novo edital para mais 72 pontos de cultura
no estado. “O mais importante não é o recurso para reforma dos prédios, é
a preservação do bem imaterial para o estado. No caso do 24 de Agosto,
ele ia ser vendido para ser um supermercado por falta de dinheiro. Nós
intervimos junto com a prefeitura para que isso não ocorresse”, relata
Assumção.
“Se fecham estes locais, a gente cai no esquecimento. Precisamos de
mais pessoas da sociedade se envolvendo com nossas raízes, pessoas
jovens que são descendentes destas agremiações”, afirma o presidente do
24 de Agosto, Nei Madruga, ao lembrar que pessoas lutaram há 95 anos
para erguer este patrimônio. Segundo ele, preservá-lo elevará a cidade.
“Hoje somos reconhecidos como patrimônio histórico. Isto é muito
importante”, avalia.
O incentivo do estado irá contribuir para sanar o déficit cultural
sobre a cultura negra no Rio Grande do Sul, acredita a produtora
cultural pelotense Nailê Machado. “A sociedade hoje está modificada. O
negro não se vincula mais ao clube e temos dificuldades dentro do
movimento social negro. Para sobrevivermos temos que ter projetos que
tragam a comunidade para dentro da cultura negra que seja algo além do
samba, pagode, hip hop, rap, nós temos vários outros tipos de cultura
que convivemos de forma mais aberta hoje. O governo do estado acredita
neste nosso projeto. Não teríamos uma luz no fim do túnel se o estado
não enxergasse o valor da baixa cultura e da cultura afro”, defende.
Apoio
O ponto de cultura Fica Ahi receberá R$ 180 mil do Governo do Estado e
promoverá oficinas de capoeira e dança afro, pintura, contação de
histórias, artesanato, desenho, confecção de máscaras africanas, edição
de vídeos, fotografias, percussão, construção de sopapo, economia
criativa, sustentabilidade e captação de recursos.Também serão
realizados encontros e cortejos com mestres griôs, formações, debates e
ciclo de leituras a partir das reflexões de autores negros. Já o Clube
24 de Agosto prevê oficinas de dança, capoeira, culinária afro, oficina
de horta e música. O projeto também trabalhará com rodas de memória,
contação de histórias e atividades cineclubistas.
“Hoje o poder público está dando importância para nossa cultura e
isso fortalece a nossa resistência. Um clube social é importante para
preservação das raízes do povo e preservação da história. Como diz o
nosso hino: ‘povo sem história acaba por ser escravo’, avalia Nei
Madruga.
Texto: Rachel Duarte- especial Secom
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