É que a televisão me deixou burro, muito burro, demais
Por Sakamoto
Resolvi aperfeiçoar um roteiro, postado
por aqui anteriormente, com coisas que andei vendo na TV nos últimos
dias. Acho que agora está digno.
Cena de fazenda ocupada por
indígenas. Zoom na latinha de cerveja. Câmera abre até mostrar indígenas
sentados em roda, rindo de algo. Locução do repórter cobrindo as
imagens:
- Eles estão festejando a invasão de trocentos mil hectares de terra. Terra que, até então, era produtiva.
Close em um deles, no que fala
errado. Desfocar as crianças indígenas com cara de pobres ao fundo. Foco
na falta de dentes do entrevistado. Se estiverem sujos, melhor.
- Estamos esperando o governo nos atender, né?
Observação: Editar e jogar fora a
parte do “Os pais dos pais dos meus pais costumavam viver nessa terra.
Hoje, minha família vive de favor em outro terreno com outras famílias,
né? Muita gente, não cabe, não dá para plantar, né?”
Passagem para o laboratório da
empresa dona da fazenda. Close na lágrima do cientista, que perdeu parte
da pesquisa com a ocupação na plantação dos eucaliptos:
- Isso era a minha vida.
Subir som, resgatando versão de Milton Nascimento de “Coração de Estudante”, cantada no funeral de Tancredo Neves.
Cortar a entrevista com a liderança
que fala bonito – “Na verdade, a tribo indígena pede há 30 anos que os
títulos sobre a área, uma reserva já demarcada em? 1937, sejam anulados.
Não estamos pedindo nova demarcação, apenas que se cumpra o que já foi
decidido no passado”.
Observação: Se entrar essa
declaração, a matéria sobe para o bloco de política e o diretor disse
que é para ficar logo depois dos homicídios e assassinatos da madrugada,
em cotidiano.
Cortar as imagens de crianças
indígenas passando fome, refestelando-se com jaca velha. O chefe disse
que nosso telespectador não quer ver jaca velha enquanto está jantando.
Passagem para a prefeitura do município. Prefeito:
- O medo é grande nas cidades por causa da ação dos nativos.
Repórter:
- E o prefeito denuncia.
Prefeito:
- As ONGs internacionais e o MST é que
arregimentaram todo esse povo nas favelas de Salvador para levar nossas
terras. Eles não são nem índios. Eles parecem índios para você?”
Entra um “povo fala”. Colocar uma idosa senhora:
- Tenho medo de vandalismo.
Um comerciante:
- Eles são contra o progresso, não querem ver geração de empregos.
Um policial:
- Normalmente, há muitas reclamações de alcoolismo com eles.
E um estudante . Encontrar o que tiver mais cara de hippie e falar para o próprio umbigo:
- Mas os indígenas têm direito a essas
territórios por serem delas autóctones e nelas realizarem seus rituais e
a efetivação simbólica de sua relação com o universo. Ou seja, há um
princípio cosmológico presente nessa interação ser vivo e local que não
pode ser negada pelo capitalismo.
Corta para o repórter na entrada da fazenda.
- A paralisação das atividades de produção de madeira na última semana fizeram o Brasil perder R$ 872 milhões em exportações.
Mostrar gráfico com dados da
associação dos proprietários de fazendas ocupadas por populações
tradicionais e trabalhadores rurais.
Repórter completa:
- E, entre os invasores, há procurados pela polícia, como o cacique Escambau, foragido há anos.
Volta para o estúdio, onde o
apresentador faz beicinho de indignação, balançando a cabeça, antes de
abrir um sorriso e chamar a matéria da preparação para a Copa do Mundo.
Segue para repórter em frente ao Itaquerão:
- Estamos aqui com o coordenador do
núcleo de coreografia da abertura da Copa que vai dizer como o Brasil
irá receber atletas de países dos cinco continentes.
Corta para o coreógrafo:
- A pedido do governo, os indígenas
serão os personagens principais. O tema será “Apogeu e Glória de
Tupã-Deus-Sol, Solidariedade e Luz” e mostrará todo o esplendor dos
primeiros moradores desta terra. Usaremos muitas plumas. Sintéticas, é
claro! Afinal de contas, temos que ser exemplos em sustentabilidade.
Ao fundo, moças e rapazes brancos, muito brancos, mostram trechos da coreografia. Dançando, dançando, dançando…
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