Dorothy Counts: Sou uma mulher negra e orgulhosa.
Aos 70, Dorothy Counts relembra a experiência de ser a 1ª menina negra em um colégio de Charlotte
Dorothy
Counts tinha 15 anos quando se tornou a primeira menina negra no
colégio Harding, em Charlotte, sul dos EUA. Era 4 de setembro de 1957, e
a cidade tentava a integração racial.
Por cinco dias, ela
resistiu a pedras, cuspe e insultos. A provação a levaria a dedicar a
vida à educação e viraria uma das imagens mais poderosas na luta por
direitos civis que culminaria em Barack Obama.
Eu ainda lembro daqueles dias. Tinha 15 anos, mas não é algo que vá esquecer. É parte da minha vida.
Antes
daquele dia, minha família teve uma discussão sobre eu entrar em
Harding. Meus pais inscreveram eu e dois dos meus três irmãos, mas só eu
fui escolhida --meu irmão [mais velho] foi para a Escola Central de
Charlotte.
Foram cinco famílias escolhidas; quatro decidiram ir adiante. Eu era a única menina [negra] em Harding.
Meu
pai era professor na Universidade Johnson C. Smith [majoritariamente
negra] e pastor. Minha mãe se formou na faculdade mas era dona de casa, e
na minha adolescência foi supervisora de um dormitório escolar.
Durante
anos, conversamos sobre uma boa educação, algo muito importante na
minha família, e igualdade. Quando eles foram abordados para nos
inscrever, hesitaram, mas conversaram conosco sobre o que aconteceria.
Era parte de um processo, sabíamos que alguém tinha de fazer, e
avançamos.
Eu tinha ido a uma conferência mundial da
juventude presbiteriana em Iowa, e tinha sido boa uma boa experiência, a
minha primeira em um mundo não-segregado.
Por isso,
quando voltei e soube que tinha sido aceita em Harding, não pensei muito
a respeito. Mas coisas tinham ocorrido antes do primeiro dia de aula, e
meus pais não me contaram, porque não queriam que eu chegasse à escola
com medo. Falamos só sobre como eu devia me comportar.
O PRIMEIRO DIA

Quando
meu pai me levou naquela manhã, um de seus amigos da universidade, o
dr. Thompson, nos acompanhou - é ele, naquela foto [a icônica foto em
que Dorothy é cercada por colegas agressores]. A rua estava bloqueada, e
meu pai tinha ido procurar onde estacionar. Quando eu vi toda aquela
gente, não pensei no que poderia acontecer. Eles tinham sabido pelo
jornal que quatro estudantes [negros] tinham sido selecionados para
escolas predominantemente brancas.

Em
Harding havia uma mulher que fundou um tal de Conselho Branco e que
pediu às pessoas que impedissem que a integração acontecesse. Ela estava
lá no meu primeiro dia, e ela incentivou os alunos a me impedirem de
entrar, a me cuspirem. Na foto não há só alunos, há adultos. E há
crianças menores que foram lá só para isso.
Mas por causa das
conversas como meus pais, meus avós, eu sabia que estava lá por uma
razão. Mantive minha cabeça erguida e entrei.
Os alunos
fizeram o que a mulher pediu. Eram adolescentes, quando começam é
difícil parar. Quando entrei, sentei sozinha no auditório. Muito do que
fizeram comigo foi pelas minhas costas. Ninguém me orientou. Eu então
fui chamada a sentar com os colegas da minha classe, mas não teve
nenhuma orientação especial da diretoria.
Não houve preparação da diretoria para aquele dia, e isso fez diferença [em relação a outras escolas integradas].
O
diretor tinha dito ao meu pai que não sabia o que aconteceria comigo.
Ele nunca fez nada, mesmo vendo o que acontecia. Meu armário era perto
da sala dele, e muita coisa me aconteceu naquele corredor. Ele nunca
interveio.
Nem os professores. O lugar que me coube foi no fundo da sala. Eu levantava a mão, ninguém me chamava. Eu não sabia o porquê.
CINCO DIAS
Fiquei
lá quatro dias ---na verdade, cinco. Em cada um deles, ao voltar para
casa, meus pais me perguntavam como tinha sido, eu lhes relatava, e meu
pai me perguntava se eu queria voltar.
Eu dizia que sim, pois
achava que o dia seguinte seria melhor e perceberiam que eu era como
eles, só a cor da pele era outra. Só uma adolescente que queria estudar.
No
meu penúltimo dia, aconteceu um incidente na cantina. Fui cercada por
uns garotos que cuspiram na minha comida. Naquele dia, perguntei aos
meus pais se eles poderiam passar a me buscar para almoçar em casa, já
que a escola permitia.
Mas quando estava mexendo no meu
armário, pela primeira vez, eu senti a violência física. Empurrões e
xingamentos eu podia aguentar. Mas ali senti algo me atingir nas costas e
na nuca. Nas costas foi um apagador; na cabeça eu não sei. Mas era
afiado.
Na saída, vi meu irmão esperando no carro e, pela primeira vez, tive medo. O vidro de trás estava estilhaçado.
Aí percebi que não era só eu o alvo, era minha família.
Contei
naquele dia aos meus pais o acontecido. Meu pai disse que sabia o que
eu responderia, e ligou para a polícia e para o superintendente das
escolas. Isso provavelmente foi o que o levou a me tirar de Harding,
porque o superintendente lhe disse que não estava sabendo de nada, que
indagara à escola e ninguém lhe dissera que eu tinha tido problemas.
Eu estava lá para receber educação, e não era isso que estava acontecendo.
SEGREGAÇÃO
Em
Charlotte, havia segregação. Sentíamos no dia-a-dia, mas era a norma.
Crescemos assim. Não questionávamos. É irônico, porque eu morava nesse
bairro [formado principalmente pelas famílias de professores negros da
universidade], não muito longe desta casa --e por isso quis mudar de
volta para cá há dez anos. Meus amigos eram os vizinhos. Sabíamos que
não podíamos ir a alguns cinemas, nem a todos os restaurantes, e não
podíamos nos hospedar em muitos hoteis.
Sabíamos disso,
não achávamos certo, mas era a norma. Só que o que aconteceu naqueles
dias na escola nunca tinha me acontecido antes. Havia brancos aqui no
bairro, mas eram de classe baixa --os negros eram de classe média, média
alta, por causa da universidade-- e eram eles que iam a Harding.
Um
ano antes do evento que marcou os 50 anos daquele episódio, em 2007, eu
conheci um dos meninos na foto. O avô dele era policial, ele me contou
como foi criado.
Eram dois mundos diferentes. Ficamos
amigos, Woody Cooper. Algumas pessoas se aproximaram de mim na época do
evento, mas Woody foi quem continuou meu amigo.
Eu lhe
dizia que crescemos em culturas distintas, e que era o momento certo de
fazermos [os negros] o que fizemos, mas eles [os brancos] não estavam
preparados. Era cedo, era um teste em Charlotte. Fazia só três anos que a
Justiça federal tinha declarado a segregação nas escolas
inconstitucional.
Depois daquilo, a integração foi adiada
por três anos. Foi um vexame na cidade, a foto [do primeiro dia de aula]
rodou o mundo. Mas isso despertou um debate sobre como melhorar as
coisas aqui. E as coisas melhoraram. Meus filhos estudaram em escolas
públicas aqui, e era muito melhor porque havia o transporte escolar para
alunos de outras comunidades, para que as escolas não fossem
homogêneas.
Quando isso acabou, muitas escolas passaram a
ser frequentadas só por crianças negras e latinas, por conta do lugar
onde vivem. Elas recebem menos recursos, um tratamento de segunda
classe.
FORMAÇÃO

Eu
me formei em psicologia. Quando terminei a faculdade, sabia que queria
fazer algo para ajudar famílias. Trabalhei como assistente social por um
ano em Nova York, depois fui para uma pré-escola, e foi assim que
passei a trabalhar com educação infantil e voltei para Charlotte.
Depois
[do incidente], passei um ano na Filadélfia com meus tios, para
frequentar a escola lá. Meus pais achavam importante eu ir a uma escola
integrada para não ficar com a impressão que todo mundo era como em
Harding.
Depois desse ano, meus pais me puseram em um colégio
interno em Ashville, no oeste da Carolina do Norte. Era uma escola da
Igreja Metodista para meninas, onde as alunas eram negras mas os
professores eram mistos.
Quando resolvi estudar na Johnson
C. Smith, aqui, meus pais se surpreenderam. Mas eu estava longe de casa
havia três anos, e nós éramos uma família unida. Queria estar aqui.
Depois
de me formar, em 1964, fui para Nova York, onde arrumei um emprego no
departamento social. Meu primeiro trabalho foi em um abrigo para
crianças abandonadas e abusadas.
Depois dei aulas em uma escola infantil, e voltei a Charlotte de novo.
Minha
experiência em Harding moldou minha vida. Aos 15, decidi que o que
fosse que fizesse, seria para garantir que nenhuma outra criança
passasse pelo que eu passei. E as coisas que fiz nos meus mais de 50
anos trabalhando foram nesse sentido. Fui professora infantil, dirigi
programas de educação e trabalhei com uma organização sem fins
lucrativos, da qual me aposentei em julho. Foquei em mostrar aos pais
como é importante educar as crianças desde o nascimento, mesmo antes da
escola. Sinto falta dos meus colegas, dos jovens, mas continuo ativa.
Sou próxima da universidade e quero fazer trabalho voluntário lá, e em
outro programa para crianças em Charlotte.
BARACK OBAMA

Você
não tem ideia de como me senti quando o presidente [Barack] Obama foi
eleito. Fiquei tão empolgada! Naquele ano, assisti a todos os debates,
li e ouvi tudo que foi dito. E na noite da eleição, decidi que queria
ficar sozinha em casa, não ir a nenhuma festa, e esperar os resultados.
Fossem quais fossem, queria estar sozinha ao ouvir.
Há 55
anos, não passava pela minha cabeça que eu viveria para ver isso. Não
que eu achasse que não pudéssemos, mas é que ele [Obama] é fenomenal,
posso ouvi-lo sem parar e vejo nele a mesma paixão e preocupação com as
pessoas que eu tenho.
Quando ele ganhou a eleição, pensei
que tínhamos de apoiá-lo, porque ele herdou uma bagunça. Eu já dizia que
esperava que ninguém achasse que ele ia consertar de uma vez, em quatro
anos, o que levou oito para fazer. Espero que as pessoas entendam.
Se
acho que esperam mais dele por ele ser o primeiro presidente negro? Com
certeza, e acho que isso é parte do porquê [de haver gente frustrada].
Mas é interessante, eu sei que sou negra, e sei que ele é negro, e claro
que isso me empolga, porque vi a mudança avançar em vários níveis. Mas
também acho que ele era o mais qualificado dos dois candidatos que
concorreram em 2008. Agora acho a mesma coisa.
PERDÃO

[Quanto ao perdão,] só Woody se desculpou comigo.
Saiu
uma reportagem a meu respeito no jornal local, e na mesma semana ele
tivera uma aula na igreja sobre perdão. Recebi um email do repórter
dizendo que tinha uma pessoa tentando entrar em contato comigo, se ele
podia dar meu email. Disse ok, e ele [Woody] me escreveu.
Ele
pediu perdão, me contou quem era, me disse que se sentia mal e que
gostaria de ter intervindo naquele primeiro dia, e não o fez.
Eu
levei dias para responder, porque ele foi o primeiro a me pedir perdão.
Respondi e continuamos a nos corresponder por seis meses.
Um
dia, ele me convidou para ir jantar com ele, a mulher e um rapaz. Nós
nos encontramos em um restaurante na cidade onde, naquela época, ele
poderia comer e eu, não. Foi lá que jantamos.
Continuamos a
nos falar, desenvolvemos uma bela amizade. Ele morreu de câncer no ano
passado. A mulher dele me considerava parte da família, assim como ele.
Duas
pessoas se desculparam quando passou um documentário sobre a escola,
mas não mantivemos contato. Woody foi o único que pediu perdão e de fato
sentia. Fomos amigos por quatro anos, e podemos dizer como o perdão é
importante.
Na escola, houve só uma menina [que falou
comigo]. Ela era nova lá, e se aproximou de mim no segundo dia, que foi o
melhor dia. Voltei para casa e disse aos meus pais que ao menos tinha
uma amiga. Mas no dia seguinte ela me ignorou. Há uns 30, ela mandou uma
carta para uma TV local que fez um programa comigo, para me
reencaminharem, pedindo que eu entendesse o que aconteceu. Eu já sabia.
Ao se aproximar de mim, ela e a família receberam ameaças, e os pais a
mandaram se afastar.
NETOS E FILHOS
Meus
cinco netos sabem da minha história. Meu neto mais novo, que nasceu na
Tailândia [o filho é diplomata e é casado com uma francesa], viu a foto
no jornal e me perguntou porque fizeram aquilo. Ele tinha cinco anos na
época, queria saber por que as pessoas foram "malvadas". Hoje, aos nove,
ele entende.
Acho que a identidade negra nos EUA está
mais evidente hoje do que há 20 ou 30 anos, porque as pessoas temiam que
ela se apagasse. Depois da integração, havia alguns negros que achavam
que para serem bem-sucedidos não podiam se associar a essa identidade,
achavam que tinham de emular os brancos que viam à volta. De uns 30, 20
anos para cá, porém, isso começou a voltar com mais força.
Meus
dois filhos são adotados, e ambos são mestiços. É uma coisa que eles
tentaram entender desde pequenos, e tentaram buscar com quem se
identificar.
Meu irmão pesquisou nossas origens. A minha
família é muito misturada. Mesmo assim, sei quem eu sou. Sou negra. Sou
uma mulher negra. Sou uma mulher negra e orgulhosa.
Por LUCIANA COELHO - ENVIADA ESPECIAL A CHARLOTTE, CAROLINA DO NORTE
Da Folha
Imagens: Folha e internet
Incrível.
ResponderExcluirEu, sinceramente, não sei se teria essa força!
Agente arruma força de onde não sabe!! nunca sofri agressões fisicas assim como ela, mas nos meus tempos de escola passava por isso todos os dias, e olha que eu era uma criancinha, nem eu sei como aguentava aquilo,crianças fazendo gestos, cantando musicas que humilham as negras e dai para pior!!so porque acham que nos não temos o direito ao melhor!!
ResponderExcluirÉ verdade! Por isso que é mto importante a conscientização desde pequeno. Tem pessoas que não conseguem encarar racismo, deprimem... Precisamos educar nossas crianças e nossos jovens para se posicionar sempre confiantes, para que não esmoreçam. Mas que é difícil, é!
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