Shakespeare e a História da África do Sul por trás de ‘O Rei Leão’
A expressão ‘mega musical’ é a mais
comumente usada para descrever o espetáculo mais aguardado pelos brasileiros em
2013: O Rei Leão. São 53 atores no elenco, um palco com mais de 10
toneladas e inclinação de meio metro, mais de 40 cenários, cerca de 200 bonecos
animados, incontáveis peças de figurino, efeitos especiais e um orçamento de
R$50 milhões para a produção brasileira. Ao redor do mundo, são 19
produções que acumulam uma bilheteria estipulada em quase U$5 bilhões e lucro
de quase U$854 milhões desde sua estréia, há pouco mais de 15 anos, tornando-se
o musical mais valioso do mundo.
Mas isso são apenas números e estatísticas
recentes. Por maiores que tenham sido os investimentos iniciais, era impossível
medir quanto ou se a versão para os palcos agradaria. O que garantiria o
sucesso do musical? Para a grande maioria, a resposta seria a própria Disney,
líder do mercado de filmes de animação e entretenimento e uma das principais
produtoras dos chamados family musicals (musicais para toda a
família). Para outros, o sucesso seria creditado na trilha sonora de Elton
John e Tim Rice e na trilha incidental de Hans
Zimmer, com canções que já haviam marcado toda uma geração. E para uma
outra pequena parte, o sucesso seria creditado ao fato de os personagens do
roteiro de Irene Mecchi, Jonathan Roberts e Linda
Woolverton serem animais antropomórficos, ou seja, que se expressam
como seres humanos.
A verdade é que todas essas teorias contribuíram
fortemente para o sucesso do filme, lançado em 1994, mas que, conforme
divulgado pelos próprios produtores do musical, não garantiriam previamente o
sucesso da transição para os palcos. A forte história, baseada vagamente na
obra de William Shakespeare e nos contos bíblicos de José
e Moisés, talvez não tivesse o mesmo impacto nos palcos; e a ideia de
retratar os leões e demais animais da savana africana com figurinos completos,
remeteria mais aos shows com patinação na gelo (Conhecidos como Disney On
Ice) do que com um verdadeiro musical da Broadway. Eis que dois nomes se
destacam nessa transição: Julie Taymor (a diretora e criadora
do musical) e Lebo M. (compositor sul-africano).
A CULTURA ORIENTAL E DIREÇÃO
CINEMATOGRÁFICA
Julie Taymor, consagrada diretora americana, com um invejável currículo que transita especialmente por óperas e filmes de
Hollywood, foi chamada e inverteu esse jogo, apostando no seu talento nato em
inovar. O projeto, que mais parecia uma perda de tempo, energia e dinheiro,
começava a ganhar os olhos, o coração e todos os investimentos da Disney. A
história foi aprofundada com elementos da cultura oriental de países como Japão
e Indonésia (em especial das Ilhas de Bali e Java), por onde Julie transitou
por cerca de 5 anos. E foi na própria Indonésia que ela criou sua companhia de
dança e máscara, juntando elementos das danças balinesas, javanesas e o teatro
de bonecos japonês. A diretora foi mais influenciada pela própria cultura
africana na concepção das máscaras do que na aparência dos personagens da
animação.
Julie chegou ao projeto com ideias divergentes do
resto da equipe, afirmando categoricamente que, apesar de ser uma história
contada com animais, era uma fábula humana, portanto, os atores deveriam ser
mostrados e não deveriam estar escondidos atrás de figurinos de pelúcia. Se nos
filmes, os espectadores assistiam determinados efeitos e se perguntavam como
eles eram feitos, com O Rei Leão, Julie se baseou em explicar o ‘como’
e fez questão de que cabos, fios e todo o maquinário fossem revelados
junto com a figura humana, enaltecendo o árduo trabalho de um ator que também
se torna um manipulador de bonecos e dá vida ao mesmo personagem de duas
formas: a humana e a mecânica. A ideia de se enxergar o ator através de
figurinos, bonecos e máscaras é clara para Julie: “Quando os efeitos especiais
estão escondidos, o público se torna passivo. Mas revelando o trabalho interno
para se criar essa mágica, O Rei Leão convida seu público a usar a
imaginação ativamente e, com ela, preencher essas lacunas”. Para a
produção brasileira, o elenco contou com a experiência da carioca Marta
Cotrim, que deu aulas de dança balinesa e javanesa, aliando esses
movimentos à manipulação de bonecos e ao uso de máscaras mecânicas e estáticas.
Além da criação de figurinos, bonecos e máscaras,
Julie triunfou na direção original do musical, que, apesar de revelar seus
segredos de manipulação, é bastante cinematográfico em sua concepção de cenas.
“O público sempre sabe para onde olhar, mesmo que várias coisas estejam
acontecendo simultaneamente no palco. A direção é cinematográfica. É como pegar
a magia da tela grande e permitir ao público tocá-la.”, afirma John
Stefaniuk, diretor associado da produção.
SHAKESPEARE E O REI LEÃO
Com isso, a história também foi aprofundada. Se
antes, a obra era comparada aos contos bíblicos de José e Moisés com uma pitada
de Hamlet de Shakespeare, a versão para os palcos ganhou ainda mais
proximidade com essa e outras obras do dramaturgo britânico, que viveu há
praticamente meio milênio antes da criação de O Rei Leão.
Especialistas que enxergavam o príncipe da Dinamarca (Hamlet) em Simba
na animação, puderam encontrar elementos dramatúrgicos que também pareciam
retirados de obras como Ricardo III, Macbeth (Principalmente
o vilão Scar), O Rei Lear, Cymbeline e a primeira
parte de Henry IV. Apesar de nunca terem assumido publicamente a
influência da obra de Shakespeare no roteiro do filme animado, fontes afirmam
que os autores da trama comumente se referiam a obra como Bamblet, por
sua similaridade com Bambi (outra fábula de sucesso que ganhou as
telonas pela mãos da Disney) e o clássico Hamlet.
Mas Julie, bastante experiente na direção de
obras shakesperianas como A Megera Domada, A Tempestade e Titus
Andronicus nunca escondeu a influência e, pelo contrário, abusou dela na
concepção de O Rei Leão. As tragédias gregas que tanto influenciaram
Shakespeare também são relembradas através dos números de ensemble com Rafiki
(fazendo o papel do corifeu). O desenrolar da trama só alteraria uma coisa de
sua maior influência: o final. Podemos então considerar O Rei Leão
como uma tragédia, com elementos cômicos e um final de romance. Tantos
aspectos, influências e referências poderiam facilmente cair na encheção de
linguiça comumente vista em filmes infantis, porém esse é o erro mais visto na
descrição da obra: O Rei Leão não é um musical infantil, e sim,
um musical onde crianças e adultos recebem o mesmo conteúdo e permitem que sua
própria imaginação e experiência terminem de digerir os valores abordados.
Mas engana-se quem pensa que as referências de O
Rei Leão param por aí… Toda essa influência na trama abre ainda mais
espaço para o maior pano de fundo da história: A África do Sul e o Apartheid.
O APARTHEID
Em Afrikaans, Apartheid significa ‘a situação de
se estar à parte’ e para os sul africanos a ideia de serem excluídos de
sua própria sociedade resultou em exílio, mortes, sofrimento e medo, mas jamais
derrubou sua cultura, dividida em tribos com seus próprios dialetos e costumes.
A segregação racial já tomava a África do Sul desde os tempos coloniais sob
comando de forças holandesas e britânicas. No entanto, o Apartheid como
política oficial foi introduzido nas eleições gerais de 1948. A nova
legislação, comandada pelo Partido Nacional, dividia os habitantes em quatro
grupos raciais: nativo, branco, ‘colorido’ e asiático. No geral, a legislação
previa a redução dos direitos da grande maioria negra e a supremacia da minoria
branca. Educação, assistência médica, praias, transporte, áreas residenciais e
outros serviços e locais públicos foram segregados, muitas vezes, através de
remoções forçadas. Apenas negros que serviam aos brancos tinham autorização
para frequentar, com determinadas condições impostas, áreas ‘brancas’. Revoltas
populares e protestos foram recebidos com perseguições e prisões e, quanto mais
os grupos anti-apartheid se militarizavam, mais o governo respondia com
repressão e violência. O clima de guerra perdurou durante os anos 50, 60, 70 e
80. Finalmente, em 1990, o então presidente F. W. de Klerk
iniciou negociações para acabar com o regime do Apartheid, culminando em
eleições democráticas multi-raciais, que elegeram em 1994, o presidente
negro e líder da oposição Nelson Mandela. Apesar disso, os
vestígios do regime ainda são encontrados pelo país.
E era o próprio Nelson Madela a maior inspiração
de Lebo M., compositor sul africano, nascido em 1964 no Soweto (subúrbio de
Joanesburgo e maior refúgio da população negra durante o Apartheid). Lebo M. é,
sem dúvida, a força da cultura africana em O Rei Leão. Exilado de seu
país em 1979, chegou aos Estados Unidos, onde anos mais tarde ganhou
reconhecimento e prestígio, exaltando justamente a cultura do país que o havia
renegado. Lebo M. foi indicado para fazer os arranjos vocais do desenho animado
por Hans Zimmer, compositor da trilha incidental de O Rei Leão e com
quem havia trabalho dois anos antes no filme The Power of One (O
Poder de Um Jovem), que também explorava a Era do Apartheid na África do
Sul. Na dublagem oficial em inglês, é possível ouvir a voz do próprio Lebo M.
no famoso cântico que mistura os dialetos Zulu e Xhosa em Circle Of Life
(Ciclo da Vida).Com o sucesso da trilha do filme em 1994, a Walt Disney Records lançou em 1995, o CD Rhythm Of The Pride Lands, um espécie de sequência musical do filme, com composições que inspiraram a trilha original, mas que não entraram no projeto final. A maior parte das composições foi feita por Lebo M. e pelo produtor musical Jay Rifkin.
Quando chamada para o projeto do musical, a
primeira iniciativa de Julie Taymor foi utilizar esse material de Lebo M. em
sua versão para os palcos, pontuando a história com cânticos típicos e
estabelecendo uma conexão mais profunda da trama com o Apartheid. Agora, o
reinado do vilão Scar representava os anos obscuros da história sul
africana, que conheceu a liberdade no exato ano de lançamento do filme (1994),
estabelecendo um parâmetro com o final feliz da animação, onde Simba
(Nelson Mandela) assume seu reino e o sol (liberdade) volta a raiar sobre a
população.
De todas as músicas compostas por Lebo M.,
destaca-se One By One, entoada e cantada na abertura do segundo ato do
musical (na versão original do musical [1997] era o próprio Lebo M. quem subia
ao palco para executar a canção juntamente com outros sul africanos), quando a
Terra dos Leões já está sob a ditadura de Scar. Originalmente, a
canção foi gravada com aspectos de um hino militar e soava como uma música de
protesto, já que seus versos em Zulu trazem afirmações como ‘Nós venceremos’,
‘Aguente firme, meu povo’, ‘Não perca a força’, ‘Sabemos quem somos’,
‘Confiamos em Deus’ e ‘Este sangue é do nosso povo, esta terra é do nosso povo
e temos orgulho dela’. A canção exalta a união de todas as tribos do povo sul
africano, com costumes, cultura e idiomas completamente diferentes, mas que
tinham em comum o mesmo ideal: reconquistar seu direito básico em sua própria
nação. E como uma forma de premonição, a música enaltece que se o povo
massacrado se unir, a paz e a igualdade não tardarão a chegar.
A CULTURA AFRICANA
Outras canções como a convidativa Circle Of
Life, a animada Hakuna Matata, a sombria e lúgubre Shadowland,
a fúnebre Rafiki Mourns e a emocionada They Live In You/He Lives
In You pontuam diferentes aspectos da cultura africana, que também é
fortemente explorada no texto. Em toda a obra é intensa a presença dos dialetos
IsiZulu, IsiXhosa, SeSotho, SetSwana, Congolese e KiSwahili.
Outro aspecto da cultura africana mais fortemente
explorado pelo musical do que pelo filme é a presença de um sangoma,
representado pela babuína Rafiki. Sangoma é uma espécie de
curandeiro e que, na cultura africana, estabelece uma ponte entre os vivos e os
seus ancestrais que já morreram, confirmando o ciclo natural da vida ao afirmar
que um ancestral continua vivo através de seu sucessor. No musical, Rafiki
pontua toda a história como narradora e como guia espiritual dos demais
personagens. Esse papel é obrigatoriamente representado por uma atriz/cantora
sul africana em qualquer produção do musical. No Brasil, a excepcional Phindile
Mkhize, que no próximo mês comemora seu 11° ano de O Rei Leão
(com produções em diversos países), dá vida à Rafiki. As atrizes que
ocupam as funções de 1° e 2° cover de Rafiki também são sul africanas.
Ao todo, 11 atores sul africanos dividirão os palcos com os atores brasileiros.
A Disney Theatrical Group decretou obrigatória a presença de no mínimo 7
atores/cantores sul africanos em seus elencos de qualquer uma das produções
oficiais de O Rei Leão pelo mundo. Todos os anos, são feitas audições
em diversas cidades da África do Sul para a contratação de novos profissionais.
A resposta para isso é simples: o coro de 11 vozes sul africanas ressoa como
100 vozes fortes e bem treinadas, dividindo uma paixão sem limites por sua
própria cultura. A música africana explorada pelo espetáculo também traz
elementos típicos da cultura tribal como a improvisação musical, a polifonia,
a polirritmia, síncope de ritmos e o artifício de chamada e resposta, onde
um cantor ou grupo faz a vez de líder e canta algo que ecoa por outro grupo.
Também no figurino, podemos encontrar uma bela
homenagem aos reis Zulu. Tanto Mufasa quanto Simba (após
assumir o trono) usam um manto que se assemelha à pele de um leopardo. Na
cultura Zulu, o rei deve ser o homem mais valente e forte da tribo, capaz de
proteger todo o seu povo. Portanto, para se consagrar rei, o homem é levado à
selva e deve caçar, lutar e matar, sem o uso de qualquer arma que não seja a
própria força, um leopardo, o animal mais rápido da savana. Então, a pele do
animal é retirada e dela é feito um manto utilizado pelo rei como prova de sua
força e coragem.
A PRODUÇÃO BRASILEIRA
O musical mais aguardado do ano pelos brasileiros
vem mostrando que o investimento em teatro musical garante um retorno extremamente
expressivo e que não se limita ao financeiro. A diversidade cultural de O
Rei Leão se equipara a raras obras primas, colocando em harmonia culturas
que até então pareciam opostas. E a cultura brasileira também promete ser
explorada dentro do musical sobre todos os aspectos, mas para isso, é
necessário conferir de perto a mega produção, atualmente em cartaz no
Teatro Renault.
No elenco: Phindile Mkhize (Rafiki),
Tiago Barbosa (Simba), Josi Lopes (Nala),
Osvaldo Mil (Scar), César Mello (Mufasa),
Rodrigo Candelot (Zazu), Ronaldo Reis
(Timão), Marcelo Klabin (Pumba), Renata
Vilela (Sarabi), Juliana Peppi (Shenzi),
Jorge Neto (Banzai), Felippe Moraes
(Ed) e mais 33 atores/cantores/bailarinos. 8 crianças se revezam entre
os personagens Jovem Simba e Jovem Nala.
por Madame Brice 02 / 04 / 2013
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