Adolescência!?...não tive!

Adolescência!?...não tive!

Enquanto todos brincavam, saíam e passeavam...eu trabalhava e era mãe de filhos não paridos de minha mãe e dos patrões.
A rotina era essa casa/escola/trabalho/casa ou ainda, casa/escola/trabalho/trabalho...trabalho/escola...
Não me recordo de encontro com amigos, rodas sociais, mas contudo conservo amigos de longa data, desta fase da vida: complicada. 
Mesclada a minha vida de rotina dura não escolhida por mim, haviam agressões físicas gratuitas que vinham de quem deveria me proteger - parir é diferente de ser mãe - facadas, tesouradas, unhadas, socos, tapas no rosto, humilhações públicas com puxões de cabelo e palavras duras, seguidas de xingamentos e ofensas...a vontade de morrer era maior que qualquer sonho que não sonhava; desconhecia esse direito. Devido a esta forma de 'carinho' explícita, passei a morar com a madrinha a 'segunda mãe', a quem passei a servir tal qual sua empregada, enquanto todos à mesa sentavam-se, meu direito era o chão, o canto da sala; no meu prato a 'mistura' era diferenciada dos demais...mas ainda assim ali era melhor do que a fome que passava e as agressões físicas, lá ao menos eu não apanhava.
Não existia o *Estatuto da Criança e do Adolescente, para o Estado eu não era ninguém, preta, pobre e favelada, interesse não havia!
Tudo ia bem, frequentando a escola fazendo amigos, mas ai o terror noturno de um 'familiar/hóspede' daquela família passa a me assombrar, acordo no meio da noite com ele apalpando um dos meus seios e sua boca nojenta quase engolindo o outro, tenho asco todas as vezes que me lembro - ele me pegou no colo, tenho a mesma idade que a filha dele do meio, diferença de dias!!!ele não tinha esse direito.
Ai você me pergunta: mas você não falou nada!?...sim eu falei, mas minha palavra não tinha valor; voltei para 'casa', meus irmãos menores tinham saudades e precisavam que eu fosse surrada no lugar deles, eu suportava mais né...era mais velha, mais encorpada.
Quando voltei, já estávamos morando numa casa, meio escura, sombria, mas já haviam móveis e uma televisão que só tinha áudio - kkk...lembrei agora como eu imaginava os personagens infantis agindo mediante o que ouvia...era o bairro da Abolição, subúrbio do Rio de Janeiro, o ano 1987...a rotina!? a mesma.
Parecia tudo bem, dentro da 'normalidade' em que estava habituada a viver, mas ai vieram as chuvas de verão, **Fevereiro de 1988; houve enchente, desabamentos, o morro se desfazia e nossa casa emprestada junto...mais uma vez eramos nada, não tínhamos nada, só a roupa do corpo, sem documentos...quatro semi-indigentes salvos por vizinhos; fomos para abrigos e por lá perambulamos até uma doação de um barraco no morro; era melhor que um abrigo. Sem água encanada, ou o mínimo de saneamento foi a solução e, dá-lhe balança d'água e restos de feira e, faxinas e bicos diversos...sic
Foi então que pelo desespero, minha mãe começou a buscar uma nova 'religião', onde ali vi a oportunidade também de ter um meio social, eu era uma menina, não tinha nem 15 anos completos e já tinha vivido mais que uma mulher de 30.
Lá fiz meu espaço, construí laços de família, a casa dos meus amigos era minha casa, seus pais meus pais, seus irmãos meus irmãos...mas sempre levando meus irmãos/filhos na barra da minha saia, a alimentação deles e minha, um pedaço de carne e um pão eram necessários - só conheci o que era cinema aos 19 anos, praia nem lembro. E, pela mão dessas 'famílias de adoção' fui salva de mim mesma e de tantas outras coisas ruins que a vida poderia ter me dado como brinde e presente de grego - a prostituição, o roubo e as drogas sempre bateram com força na minha porta.
Havia parado de estudar, coisa que tanto amava e só retomei meus estudos muito anos depois, já adulta, casada e com filhos.
No final de 1989, na nova 'religião' aos 16 anos, conheci a criatura/ traste com que iria acabar me casando, tamanho o desespero de sair de casa e mudar de vida e mais ainda, parar de ser agredida e colecionar 'tatuagens' no meu corpo das várias marcas físicas que nunca mais saíram, e alguns remendos.
Ele, 10 anos mais velho que eu, passou a conhecer a minha vida e, vendo toda minha batalha virou erroneamente minha 'tábua de salvação'...agora você veja bem: 16 anos sem esperança de viver!?...que vida era essa!?...mas nunca tentei em suicídio, tramei somente a rota torta de fuga, seja para onde ou com quem fosse.
Anos depois aos 18 anos recém completados, fui dada ao lobo; de papel passado...mais ai é uma outra história...que te conto no próximo domingo.
Aquele cheiro, 
Renata Ribeiro






** Abolição (1988): na sequência das chuvas que devastaram o Rio em fevereiro, um prédio desabou na Rua Teixeira Carvalho, no bairro da Abolição (Zona Norte), deixando 13 mortos.



To be continued: 'Na boca do lobo, o cordeiro foi devastado'

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Literatura Punany

Buck Breaking/Quebrando o Valentão: O Estupro sistemático de Homens Negros durante a escravidão nos EUA

Confissões de um velho reprodutor