Professora negra, nascida em Salvador e que atualmente mora em Bremen, revela de modo impecável como são diferentes as maneiras de encarar, debater e lidar com o racismo aqui no Brasil e na Alemanha
Por Cris Oliveira* - BLOGUEIRAS NEGRAS
“Como você lida com o racismo lá?” Essa era a pergunta que eu mais
tive de responder ao voltar ao Brasil depois de meu primeiro ano de
Alemanha. A minha resposta, que na época surpreendia à todos – inclusive
a mim mesma, era sempre :”Nunca tive de lidar com racismo lá”. Deixa eu
explicar direito o porque de minha surpresa e de minha resposta.
Há onze anos eu tinha acabado de terminar a faculdade e queria ter uma
experiência no exterior antes de cair de cabeça no mercado de trabalho e
de ter de me assumir adulta de uma vez por todas. Como professora de
inglês, minha primeira escolha tinha sido a Inglaterra, mas como as
coisas graças à Deus nem sempre saem do jeito que a gente planeja, eu
acabei conhecendo uma pessoa maravilhosa, que é a tampa de meu balaio,
com quem eu decidi dividir minha vida. E ele morava na Alemanha. Resolvi
fazer uma pequena adaptação nos meus planos e mudei o destino de minha
minha viagem. O amor enche a gente de coragem pra fazer meio mundo de
maluquice, mas no fundo, na época eu estava morrendo de medo do que iria
encontrar aqui. É que naquele tempo eu não sabia quase nada sobre a
Alemanha e o que sabia vinha de livros de história, ou seja, um passado
macabro e sangrento. Quando não era isso era uma notícia aqui outra ali,
no geral bem limitadinhas e estereotipadas do tipo Oktoberfest e
neonazistas. Claro que eu tive medo e claro que estava tensa a respeito
do que me esperava.
Quando cheguei o que me impressionou foi perceber o quanto a imagem
que se vende deste país é equivocada. Aqui tem sim Oktoberfest e neonazistas.
Tem uma série de outros problemas e preconceitos também contra a mulher
e contra estrangeiros além de ainda terem dificuldade em lidar com
todas as questões que a multiculturalidade traz consigo. A diferença é
que os limitados e racistas daqui se escondem muito bem, e quando se
mostram, são muito bem punidos. A sociedade debate constantemente sobre a intolerância e a mídia não dá trégua sobre esse tema.
As pessoas no geral são cuidadosas com essas questões, são cautelosas
nas escolhas das palavras quando não tem certeza se certo termo pode ser
ofensivo e pedem desculpas imediatamente quando, sem querer, ofendem.
Eu já passei por várias situações em que a pessoa com quem eu estava
falando dizia alguma coisa sobre o cabelo ou cor da pele de alguém e
logo em seguida me falava “Desculpa que eu falei assim, não sei se isso
ofende. Como é o certo?” Eu sempre me emociono em situações como essas
porque nelas eu vejo seres humanos, que apesar de não sofrerem a mesma
dor do outro, mostram empatia, humildade e vontade de mudar para o bem
estar geral.
Teve uma vez que eu estava em um trem e um outro passageiro estava
muito incomodado com minha presença. Não estava entendendo bem qual era o
problema dele comigo até que ele fez um comentário racista se referindo
a mim. Me levantei com a intenção de dizer umas poucas e boas a ele,
mas antes de poder abrir minha boca, TODOS os passageiros do vagão (umas
15 pessoas ) se revoltaram e tomaram a frente, discutindo com ele de
uma forma que me surpreendeu. A estória terminou com uma mulher que
exigia que ele se desculpasse comigo e como ele se recusou os demais
passageiros chamaram a polícia. Quem me conhece sabe que eu choro por
tudo e claro que chorei no meio daquele fuzuê. Os passageiros me
consolavam achando que minhas lágrimas eram por ter sido vítima de
racismo. Mal sabiam eles que eram lágrimas de emoção por causa da reação
deles. Foi um sentimento muito especial me ver sendo defendida e
aparada por um grupo de pessoas desconhecidas. Fiquei pensando que todas
elas eram muito diferentes, mas que uma coisa tinham em comum: o senso
de justiça e a certeza de que um problema social é um problema de cada
um deles. Cada um resolveu por si só levantar a voz e no final das
contas eles formavam um grupo que se indignava com o comportamento
racista do homem que me ofendeu. Vários passageiros me pediram desculpas
depois da confusão. Um senhor me disse “Não deixe esse idiota
interferir no que você veio fazer aqui, não. Aqui tem muita coisa boa.”
Essa atitude com certeza é uma delas.
Não são somente as pessoas à caminho do trabalho nos transportes
públicos, que se preocupam em mudar a percepção de alguns de que a
Alemanha é um país injusto. O governo daqui também investe
constantemente em medidas sócio-educativas e reparadoras. Aqui existe cota pra mulher, estrangeiros, portadores de deficiência.
Tem benefício pra quem tem filho na escola, pra quem é estudante
universitário, pra ajudar a pagar o aluguel, pra ajudar a pagar
atividades culturais e educativas se a família tem filho, pra comprar
livros, pra comprar remédios e por aí vai. Judeus tem direito de imigrar
pra cá sem a burocracia que pessoas de outras confissões enfrentam. A
sociedade entende que isso tudo é normal. É raro ver alguém questionando
essas medidas. Mesmo os alemães medianos parecem entender que se houve
um erro histórico, uma retratação é inevitável. Se existe discrepância social, todo mundo sai perdendo
então é melhor ter menos pra ter mais, dividir pra que ninguém deixe de
ter. Infelizmente eu percebo que as coisas andam piorando aqui também,
mas o povo questiona tudo sem parar e isso atrasa as mudanças negativas,
o que é bom.
Aí eu fico pensando no Brasil e de como a gente se orgulha de dizer
que somos o país mais tolerante do mundo. A gente se interessa em saber
como é a questão do racismo em outras partes do mundo e adora ficar
repetindo essa de que somos um povo que não sabe o que é racismo porque é
todo mundo misturado. Pra muita gente no Brasil, ativista de movimento negro é paranóico e ações afirmativas é racismo às avessas.
Tem um monte de gente que fala como se tivessem sido pessoalmente
ofendidas com toda e qualquer iniciativa que busca melhorar a situação
social de um grupo que não goza dos mesmo benefícios que o resto da
sociedade.
Me choca o fato de que em Salvador, cidade onde eu nasci, apesar
de mais de cinquenta por cento da população ser negra, ainda é possível
ser a única negra no restaurante, na aula de ballet, na sala de espera
de consultório chique, na sala dos professores da escola
particular. Fico especialmente triste quando eu percebo que muita gente
passa a vida inteira sem nem se dar conta dessas coisas, achando super
normal que outros tenham a vida mais difícil que a sua baseado em um
detalhe que não se pode escolher, como gênero, cor da pele, origem.
Infelizmente, em nosso país tem gente que acha que quem sofre
discriminação deve sofrer calado, sem questionar nada, sem exigir
mudanças. Deixa quieto que assim tá bom. Pra alguns.
Hoje em dia quando volto ao Brasil e alguém me pergunta como lido com o
racismo aqui, minha resposta passou a ser “muito melhor do que eu lido
com ele no Brasil”. Aqui se entende que discutir e questionar os preconceitos é trocar idéias e evoluir,
já em meu país quem é engajado em alguma causa tem sempre de primeiro
explicar que não é nem paranóico nem radical. É triste, mas na verdade
sabem como é que eu lido mesmo com o racismo aqui? Guardando minhas
forças pra enfrentar ele quando chego em meu país.
Publicado originalmente em Blogueiras Negras Edição: Pragmatismo Politico
Comentários
Postar um comentário
Deixe um comentário! É muito importante para nós!