Crueldade e impunidade marcam crimes de policiais
Perseguidas pelos matadores, famílias sofrem
com falta de apoio do Estado e com desleixo nas investigações; casos já
foram encaminhados para ONU e OEA
Por: Lena Azevedo
A socióloga Vilma Reis pesquisou 20 casos de extermínio de jovens na Bahia
A Salvador que atrai
milhares de brasileiros e estrangeiros para o carnaval com seus ritmos
afro vive um apartheid violento nas ruas, como se a imensa maioria negra
não tivesse direitos. Enquanto o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
do bairro mais rico da capital, Itaigara, com 17 mil habitantes, é
semelhante ao da Noruega (IDH 0,971), os 45 mil moradores de Periperi
(IDH 0,668), localizado no Subúrbio Ferroviário, que concentra mais de
50% dos homicídios da capital baiana, tem qualidade de vida pior do que a
do Gabão.
É esse caldo de cultura que favorece o
descaso das autoridades baianas na investigação e no apoio aos
familiares das vítimas de matadores , em sua maioria negros jovens –
praticado por policiais militares e civis, seguranças particulares e
outros integrantes de milícias, quase sempre por preconceito ou
vingança. O relato de alguns dos principais casos documentados por
familiares e movimentos sociais é mais contundente que qualquer
explicação. Leia abaixo:
1996 - Um menino estava
em frente a um supermercado na região da Avenida Paralela e sem querer
pisou no pé de um policial, um típico matador. Foi perseguido e
assassinado a tiros. O mesmo policial esperou que o irmão do garoto
assassinado completasse 18 anos e o executou, “para evitar que ele
pensasse em se vingar”. O caso é um dos 20 pesquisados pela socióloga
Vilma Reis no trabalho de graduação “Operação Beiru: falam as mães que
tombaram”. Vilma conta que no dia da entrevista com essa mãe a casa
começou a ser rondada. “Uma coisa é a vítima te dizer que está sendo
seguida, outra é você constatar. Naquela hora eu pensei: coloquei aquela
mulher em risco. Saí muito angustiada. Não aguentei e voltei. E ela me
disse: “Todos os dias eu vivo isso. É o mesmo policial que matou meus
dois filhos’. Ou seja, o assassino desenvolveu uma espécie de posse em
relação àquela família. É uma coisa louca e de um desmando total. Aquela
mulher recorreu a diversas instituições sem conseguir encontrar nenhum
tipo de proteção, ou responsabilização do assassino pela morte dos
filhos.
2001 – Caso narrado na CPI de Extermínio no Nordeste (2005)
que ocorreu no interior da Bahia, em um lugar chamado Cruz das Almas:
“Na semana em que um policial militar foi assassinado por alguém de nome
Daniel, cinco jovens foram executados no final de semana porque se
chamavam Daniel ou tinham parente chamado Daniel”.
2007 – 1º de Março.
Clodoaldo Souza, o Negro Blul, 22, e Cléber de Araújo Álvaro, chamado de
Bronka, 21, ambos do movimento hip hop e da “Campanha Reaja ou Será
Morto, Reaja ou será morta” foram atacados depois de uma apresentação no
Pelourinho, centro de Salvador, quando retornavam a pé a Nova Brasília,
onde moravam. Bronka sobreviveu porque se fez de morto. E foi ele quem
relatou o crime: “A gente já tinha passado pelo ponto de desova da
Estrada Velha do Aeroporto, quando fomos parados por policiais militares
em uma viatura. Eles pediram que a gente levantasse a camisa para ver
se tinha arma. Pouco depois deles saírem, apareceram dois homens armados
e à paisana. Eles nos obrigaram a ficar de joelhos, a, colocar as mãos
na cabeça e a tirar os bonés. A gente chegou a falar que não tinha feito
nada, mas eles foram metendo bala na covardia. Blul chegou a pedir:
“Por favor, minha vida”. E os caras, debochando disseram: “E agora,
negão, cadê vocês? Reaja”. Os assassinos fugiram e deixaram no chão uma
escopeta.
Bronka foi levado para o Hospital Geral
Estadual (HGE), em Salvador. A família, temendo pela vida do rapaz, já
que o crime tinha como autores policiais, chamou Andreia Beatriz Silva
dos Santos e Hamilton Borges, coordenadores da Campanha Reaja.
“Acionamos o governo para que Bronka fosse transferido para outro
hospital, porque não tinha segurança no HGE, não confiávamos na polícia.
Ele foi transferido para o Hospital das Clínicas. Fizemos tudo para que
ele não fosse descoberto, mas o próprio governo o entregou para a
delegada da 10ª, que queria ouvi-lo. Ele, que era a vítima, passou a ser
suspeito virou, na perspectiva do Estado, réu. Sumiram com os
documentos dele do hospital, de sua casa, sequestraram sua a mãe”,
lembra Andreia Beatriz.
Hamilton teve que se esconder da polícia
por exigir do governo que cumprisse a obrigação de investigar o caso.
“Eu tive que ficar um tempo num terreiro, na casa de Oxumaré. Mas em vez
de fugir, porque eu não devo nada, fui a um evento do Ministério
Público, que estava cheio de gente da segurança pública, polícia
militar, civil. Cheguei lá, me identifiquei e disse: ‘Vocês estão me
procurando, tem que ser oficialmente. Eu tô aqui. Porque vocês estão me
procurando? Gerou aquele constrangimento’. Outras três meninas que
faziam o mesmo tipo de trabalho de Blul tiveram as casas invadidas,
vasculhadas. Nossos telefones foram grampeados, várias pessoas nossas
presas e não eram usuários de droga nem nada, mas eles (policiais)
plantavam drogas para criminalizar as pessoas. Tudo isso foi o que gerou
a partir da morte de Blul”, relata.
Andreia Beatriz lembra que a Campanha
Reaja conseguiu, com doações, mudar a família de bairro, já que o
governo não estava garantindo a proteção de Bronka e familiares.
“O Estado vitima por vários aspectos
quando fere, tenta matar, como quando negligencia, não dá o atendimento
do SUS. Tudo foi feito por nós, porque o governo não fez nada, pelo
contrário. Até a medicação tivemos que providenciar. Montamos uma rede
de cuidados: cuidado físico, de saúde mental da família. Ele ficou quase
um ano sem andar, com projéteis alojados no corpo, na virilha, que
afetou bastante o movimento. Voltou a andar, mas continuou com sequelas
até ser morto.” Seis anos depois da chacina, em 18 de maio de 2013,
Bronka foi executado com um tiro na cabeça disparado no meio da rua, no
bairro onde morava (ele e a família tinham se mudado de Nova Brasília
após a chacina de 2007).
2008 – 22 de janeiro.
Parente de um policial teve a bicicleta roubada. O trapezista Ricardo
Matos dos Santos, 21, jogava futebol com vizinhos em uma quadra no
bairro Boca do Rio, comunidade Bate Facho, por volta das 23h55. Dois
carros pararam em frente ao campo e futebol, homens desceram abrindo
fogo contra todos. “Ricardo foi atingido na perna e caiu. Ainda assim
ficou de pé, levantou os braços e se identificou. Ele ainda disse aos
policiais que não era quem eles procuravam, mas foi colocado no chão e
executado com mais sete tiros”, relata o pai do rapaz, Jorge Lázaro
Nunes dos Santos.
O trapezista Ricardo Matos morava em Belo
Horizonte, trabalhava no Le Cirque e estava fazendo formação para
ingressar no Cirque du Soleil e mudar para a França. Ele tinha ido
passar as férias com a família. Após o crime, os pais e quatro irmãos
mais novos de Ricardo tiveram de deixar a casa própria, onde moravam. Os
parentes chegaram a ser incluídos no Programa de Proteção à Testemunhas
(Provita) por pressão do movimento social, articulado em torno da
Campanha Reaja e do Circo Picolino, mas desligados em novembro do mesmo
ano sob alegação de “reiteradas quebras de normas, incompatíveis com a permanência na proteção”.
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