Inserção das Mulheres Negras nos Movimentos Sociais
Texto de Silvana Bárbara com colaboração de Juliana Paiva.
Nas últimas décadas, diferentes movimentos sociais emergiram e se
destacaram na América Latina. Apesar da diversidade de ideologias,
objetivos e da adoção de estratégias distintas, os diferentes grupos
partiram de um pressuposto comum:
“[...] De um modo geral, os
movimentos sociais contemporâneos trazem consigo o pressuposto de que
transformar a realidade não é só modificar a sociedade a partir dos
aparelhos do Estado, é modificá-la também ao nível das ações concretas da sociedade civil.
Temos então que o Estado, enquanto campo institucional de atuação
política privilegiado, e a sociedade civil, com maior força numérica e
poder na produção cultural, se interpelam, e vemos surgir esse novo sujeito social que redefine o espaço da cidadania [...]” (RODRIGUES & PRADO, p.2
Neste contexto, aqui se pretende ressaltar o desenvolvimento do
Movimento Feminista e do Movimento Negro e de como ambos foram
refratários às questões das mulheres negras.
A década de 1970 foi um marco para estas duas formas de mobilizações,
pois é nesse período que ocorreram o ressurgimento do Movimento
Feminista e a criação do Movimento Negro Unificado (MNU). Apesar da
inegável importância desses movimentos, desde o início, as mulheres
negras se depararam com grandes empecilhos para sua efetiva participação
nas duas formas de mobilização. Por um lado, o Movimento Feminista não
considerava a relevância das questões raciais, considerando com descaso a
luta negra dentro da ação das mulheres. Por sua vez, o Movimento Negro
estava muito afastado das demandas e discussões de gênero e não se
propuseram a lutar contra discriminação sofrida pelas mulheres.
Foi por esta razão que as mulheres negras procuraram criar e
consolidar um movimento que atendesse efetivamente às suas demandas; um
espaço coletivo para compartilhamento de experiências, formulações de
pautas reivindicatórias e construções de estratégias de luta. Um
movimento de onde seu grito contra a dupla opressão ecoasse e pudesse
ser ouvido por todos.
Neste contexto, surgiu o Movimento de Mulheres Negras (MMN). As
dificuldades enfrentadas foram muitas, inclusive a de se desvincular dos
movimentos dos quais vieram. Além de formularem pautas específicas, as
mulheres do MMN se viram diante do desafio de fazer com que a sociedade,
e até mesmo militantes de outros movimentos sociais, entendessem sua
importância e legitimidade, pois muitas vezes as mulheres do MMN se
tornaram alvos preferenciais de piadas e críticas; não era raro suas
manifestações serem ignoradas.
Mas isto não é “coisa das antigas”?
Para quem desconhece a militância das mulheres negras, pode se
equivocar ao imaginar que na época atual esta dificuldade de pautar suas
lutas é coisa do passado, “das antigas”. Atualmente não haveria mais
esta necessidade de um movimento específico, uma vez que as negras
estariam plenamente representadas dentro dos movimentos Negro e
Feminista. No entanto, esta não é a realidade.
Infelizmente, ainda há feministas brancas que ignoram o racismo da
nossa sociedade ao tratar das questões de gênero. Afirmam que
“desconhecem” a questão da dupla opressão, e argumentam que as questões
raciais podem ser tratadas com eficácia no Movimento Negro.
Grande ilusão de feministas que tem apenas como livros de cabeceira
os escritos das autoras europeias. Obviamente, sem tirar a maestria
destas escritoras e líderes feministas, que muito contribuíram para a
origem e permanência do MF, mas o momento é também de acompanhar e se
engajar as falas e reivindicações das feministas negras. De fato, é por
todo este “desconhecimento” que o perfil dominante do MF continua sendo o
de mulher-branca-classe média.
Dentro do Movimento Feminista, algumas mulheres negras sentem-se
pouco à vontade para participar ativamente. Isto é justificável pelo
fato de que pouco espaço é dado a elas. Por serem alvo de muitas piadas
que as desumanizam, colocar suas pautas dentro do Movimento por vezes
torna-se algo penoso, sobretudo porque não é raro que suas falas recebam
pouca atenção das demais feministas. Além disso, expor o racismo pelo
qual sofrem faz lembrar muita coisa vivida que pretendem esquecer. No
entanto, é preciso ter em mente que não se pode tentar esquecer uma vida
de opressão. E que, se as mulheres negras silenciarem sua indignação e
não mostrarem para a sociedade que sofrem o preconceito cruel (que agora
ressurge velado), não serão vitoriosas. A luta iniciada por poucas
mulheres na década de 1970 deve seguir e se fortalecer a cada dia,
lembrando como tudo começou.
Outro problema é chegar à conclusão de que não é apenas no MF que as
mulheres negras sentem-se em segundo plano. O próprio Movimento Negro
não dá a estas mulheres a oportunidade de defender suas causas. Dentre
os poucos grupos do MN atuantes, a minoria tem um núcleo para tratar do
movimento de mulheres. Pelo contrário, o machismo ainda está muito
presente, principalmente em grupos onde os líderes são africanos, pois
trazem consigo sua cultura, por vezes muito machista.
Outros movimentos sociais, que apresentam núcleos diversos, também
excluem a opressão específica das mulheres negras. Nestes movimentos,
não é raro acontecer a seguinte divisão: núcleo feminista trata das
causas específicas das mulheres; e núcleo negro, das causas específicas
negras. E a mulher negra, que é vítima do machismo e do racismo
simultaneamente, como fica? Não é difícil concluir que fica praticamente
esquecida
.
Quando ocorre a abertura
O Movimento de Mulheres Negras, que teve início em 1970,
trouxe como principal conquista o engajamento destas mulheres em seguir
na sua luta e mostrar sua indignação à sociedade. Diante disto, as
demais militantes feministas começaram a entender melhor a necessidade
de reconhecer a pauta das mulheres negras dentro de suas
especificidades. Desta forma, aos poucos, estas mulheres vem sendo
inseridas no MF.
Um bom exemplo desta inserção é o caso do Movimento Social Marcha das
Vadias de Curitiba. O grupo que existe há três anos e que, nos meses de
julho, realiza uma grande mobilização feminista nas ruas da cidade,
desde seu início procurou pautar as causas negras. Mas para que isto
acontecesse, precisava ter na organização da Marcha mulheres negras que
estivessem dispostas a se manifestar pelas suas próprias causas.
Este ano, as organizadoras da Marcha chamaram novamente algumas
mulheres negras para participar ativamente da construção do Movimento.
Diante dessa abertura, estas mulheres assumiram o compromisso de inserir
no grupo as suas lutas. Puderam reconhecer que nele as suas causas
seriam tratadas com seriedade e que a abertura concedida foi bastante
propícia. Desta forma, está sendo formada dentro da Marcha uma Comissão
Negra, com o objetivo de incluir o Feminismo Negro dentro das reflexões e
ações do grupo.
Mas, estas aberturas podem não significar muitos avanços, sendo
apenas oportunidades de pautar as demandas das mulheres negras, mesmo
que lentamente. Toda forma de luta e resistência deve ser colocada
visivelmente para o sistema, com o objetivo de que este reconheça que
não há exageros em nossas manifestações, pois o racismo é um inimigo
contra o qual devemos lutar com a mesma força que combatemos o machismo.
Compreender a trajetória o desenvolvimento e a atualidade da luta
das mulheres negras brasileiras nas últimas décadas é essencial para que
feministas brancas possam repensar e ultrapassar o feminismo
demasiadamente brancocêntrico e classista em um país como o Brasil, de
maioria negra e socialmente ainda tão desigual.
Fonte: Blogueiras Feminstas
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