Não diferenciamos celas de senzalas no Brasil, diz assessora do governo sobre maioria negra nas cadeias
Rachel Duarte
“Porque a polícia respondeu às manifestações dos centros urbanos com
bombas de efeito moral e na Favela da Maré (RJ) com arma de fogo?”,
questionou a assessora do gabinete da Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, Deise Benedito. Em palestra na Penitenciária Feminina Madre
Pelletier, em Porto Alegre, ela falou sobre o racismo subjetivo que
conduz a ação das polícias e do Judiciário no Brasil. Ela falou
diretamente às vítimas do preconceito racial e social do país – que
acompanharam com sinais de concordância, como se estivesse ouvindo um
gestor finalmente falar à sua língua.
“É bem assim. Tem racismo em tudo que é lugar. Aqui dentro (prisão)
algumas funcionárias fazem diferença com a gente. Eu faço de conta que
não existe isso. Mas tem. Até entre nós mesmas”, disse L.R, presa que
engrossa a estatística de 40% de negras e pardas na penitenciária
feminina gaúcha. A colega de cela, S.G, contou que é a segunda vez que
vai para cadeia por falta de oportunidades. “Eu não consigo trabalhar.
Na primeira vez que cai aqui, quando sai, fiquei três anos sem conseguir
trabalho. Fazia bico com capina e faxina na vizinhança. A primeira que
fui pega com coisa (droga) que era minha eu assumi. Só que
agora, eu já tinha passagem e estava no meio da batida da polícia que
nem perguntou e me trouxe junto. Eu não quero pagar pelo que não é meu”,
disse.
O relato da presa reproduz a realidade cotidiana das abordagens
policiais no país, afirma a assessora do governo federal, Deise
Benedito. “A abordagem da polícia a um grupo de brancos na rua e a um
grupo de negros é diferente. E, violência gera violência. Ninguém nasce
odiando ninguém, o racismo é algo que se aprende”, argumenta. Ela
acredita nas políticas afirmativas da União, por meio de oferta de
qualificação em Direitos Humanos para os profissionais da área da
segurança pública, mas, admite que o preconceito está arraigado na
cultura brasileira há 500 anos e demanda um esforço maior e cotidiano.
“Quando vemos uma propaganda na televisão que mostra um casal de negros
comendo pão com manteiga? Quando vemos a beleza negra ser padrão? Temos 5
milhões de indígenas e 3 milhões de negros como nossos ancestrais e
nosso padrão de beleza é a ditadura européia”, crítica ao exibir belas
mulheres negras em um PowerPoint.
Além da crítica à mídia, pela reprodução da exclusão racial, Deise
também fez uma reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem que, não
raras vezes, discrimina os alunos na sala de aula. “Vocês já viram
alguma vez a noiva da festa junina ser a aluna negra?”, questionou. Foi
interrompida por um “não” unânime da plateia. Aos negros que vieram em
1500 para o Brasil nos navios negreiros só restou, afirma a gestora,
após o fim da escravatura, a liberdade sem apoio, sem políticas públicas
e sem acessos. “Isto não é liberdade. Isto é aprisionamento. Hoje não
sabemos diferenciar celas de senzalas na maioria das cadeias do país”,
diz Deise, que é responsável por inspeções nas penitenciárias.
Madre Pelletier é 1ª penitenciária do Brasil a fazer conferência livre sobre racismo
A palestra de Deise Benedito integrou uma programação inédita no
país. Pela primeira vez uma penitenciária realizou uma conferência livre
étnico-racial e de gênero. A Secretaria da Segurança Pública, por meio
da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), pretende
conscientizar as presas sobre a realidade de triplo preconceito que elas
terão que enfrentar ao retomar a liberdade. “Queremos reconstruir a
cidadania destas mulheres que sairão daqui cientes de que são mulheres,
negras e ex-presidiárias, e, deverão estar preparadas para enfrentar
estes estigmas”, explicou a coordenadora penitenciária da Mulher, Maria
José Diniz.
Na avaliação do representante da Comissão de Direitos Humanos da
Procuradoria Geral do RS, Gleidson Renato Martins Dias, as
transformações da sociedade ao longo da história sempre discriminaram
negros e índios. Por esta razão, é difícil romper as barreiras que
separam as classes. Por meio da carta dos presos da Casa de Detenção de
São Paulo, em 1978, ele afirmou que as violações aos direitos humanos de
ontem são as mesmas de hoje. “Eles escreveram de dentro do presídio
denunciando o que hoje estas presas denunciam”, relatou.
Segundo Renato Dias, enquanto o governo federal caminha para avanços
na igualdade racial e social, com políticas afirmativas e programas de
oportunidades para jovens, os demais poderes se mostram conservadores na
luta contra a igualdade de condições. “A inexistência de negros no
sistema judicial e legislativo acaba deixando espaço para os que tentam
barrar estes avanços”, defendeu.
O evento na Penitenciária Madre Pelletier foi preparatório para uma
conferência estadual sobre o tema, que será realizada em agosto.
Detentas, representando penitenciárias femininas do Estado, participarão
como público e como debatedoras. A intenção é elaborar políticas para
as mulheres negras em situação de prisão. “Vocês estão com os corpos
presos, mas as mentes livres. Estudem e tenha consciência das coisas
para que possam seguir adiante ao sair daqui”, incentivou Deise
Benedito.
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Sul21
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