Consciência 100% Negra

Por: Fernando Garcia, para +Preta Gorda 




Lembro de ser adolescente infanto-nerd-juvenil, em meados dos anos ‘90s, na Pavuna (bairro de subúrbio do Rio de Janeiro) e ter visto um jovem com uma camisa preta trazendo os dizeres ‘100% negro’. À época, um colega (negro) se mostrou ferrenho defensor – mesmo que seus argumentos esbarrassem na forma passional com que defendia – da temática. Principalmente diante da maioria branca da escola particular onde estudávamos. Confesso que, até então, eu não tinha parado pra pensar – muito menos ler – sobre as implicações de se considerar ou se assumir 100% negro. O comentário mais comum que eu ouvia era de que aquilo era “racismo ao contrário”, porque, porque se um branco usasse ‘100% branco’, seria criticado ezzzZZZZZZZZ. Tenho sono desse discurso vazio e infantilóide.

Oras, amigos, é só ler por alto, internet afora, pra entender que racismo não é a mera diferenciação de cores, traços físicos e etnias. Talvez por trazer esse ranço hipócrita da negação, é que muita gente, até próxima de nós, é racista e nem percebe, tamanha a naturalização de seus privilégios e nossas desvantagens. Racismo é a hierarquização sistemática do establishment, onde uma etnia (branca) é ‘normal’ e as outras (negra e índia, principalmente) são inferiores, selvagens, etc. Isso foi criado – com todo apoio das classes dominantes de todos os tempos – pra justificar o racismo e institucionalizá-lo como regime social ‘normal’ (daí o incômodo com o negro e o índio frequentando locais até pouco tempo – e ainda bastante – incomuns, como universidades, funções de liderança, acadêmicas e até de entretenimento).

Com a desculpa de querer igualdade para todos e não só para os negros, muita gente se coloca contra cotas (classe média, no normal), por exemplo, alegam ser racismo ao contrário (olha ele aí de novo), que isso é estabelecer que o negro é incapaz de chegar lá sozinho ezzzZZZZZZ. Esse papo já me dá mais sono do que raiva, hoje em dia, desculpem. Num só argumento (ou falta de) um racista internalizado consegue falar tanta asneira, que é até frustrante não haver comentário mais elaborado pra contra-argumentar. Cotas não são baseadas em capacidade intelectual, mas em acessibilidade de um povo que foi tirado da senzala e nunca integrado à sociedade. Claro, tem boçal pra tudo, e muitos acham que o mundo nasceu assim, quem se esforçou venceu na vida. Tanto é verdade, que foi o coelhinho da páscoa que me contou.



Voltando ao 100% negro da camisa, é muito mais fácil para o negro (alguma coisa tinha que ser, pelamor!!!) se ver como um povo, um grupo com necessidades de integração à sociedade e uma identidade própria. O branco não tem, pois, sua religião dominou meio mundo, sua música é que é considerada clássica, seus esportes são os mais divulgados e tudo isso foi se refletindo na sociedade dominada por sua cultura. Mas isso trouxe um efeito colateral, o branco ficou míope para a realidade de quem não nasceu com seus privilégios de igualdade e normalidade. Assim, muito branco que nunca se incomodou com cotas para deficientes ou a minoria de negros em classes e profissões de maior prestígio social, se coloca contra contas para negros e índios como se fossem uma afronta pessoal. A camisa faz sentido para um povo que nunca foi discriminado ‘por lei’, mas que no fato da vida, sempre é inferiorizado. A carne mais barata do mercado.

Não faria sentido se uma camisa 100% branco pintasse por aí. O que o branco perdeu ao longo da história? A própria história mostra o branco como o elemento ativo, protagonista. O negro, o índio, entre outros, são só figuras estampadas no livro. Veja como Zumbi é um dos raros negros com algum destaque e mesmo assim é visto como um bandido escravizador (Oi?!), já o restante dos negros, esses foram dóceis selvagens interesseiros que aceitaram a escravidão até que a benevolente Isabel (“a heroína, que assinou a lei divina”, já diz a canção) resolveu libertá-los depois de 488 anos. Mais do que isso não, ela já entrou para o panteão da mitologia tupiniquim por essa dádiva de nos “conceder” a liberdade. Viu? Até nisso, o negro nada fez, segundo ‘eles’, que escreveram a história, nosso povo apenas aguardou a favor e nos restou comemorar. “É por isso que não temos sopa na colher / E sim anjinhos pra dizer que o lado mau é o Candomblé”, já diz aquela outra canção.



Assim, amigos, o negro tem motivos de sobra pra se assumir 100% negro e não pela cor da pele, pois, o negro, miscigenado, raramente vai ter aquele tom de pele caracteristicamente escuro e brilhante, além da origem africana. Aliás, é uma confusão tendenciosa muito comum, desqualificar a identidade negra com a desculpa de que não somos africanos, mas brasileiros. Sim, somos brasileiros e negros. Simples. Como eu sempre falo, é uma questão de identidade, de reconhecimento de uma herança biológica e cultural que tentam nos negar o tempo todo. Jogam às falácias tudo nosso, dos traços físicos aos culturais e dizem que não há racismo, ou melhor, que há, mas é um troço qualquer aí, que o problema é social. Também acho. Uma sociedade racista é um problema, sobretudo pra nós, da classe discriminada.

Então, da próxima vez que te tentarem convencer que não precisamos de um dia ‘100% negro’ da Consciência Negra, pergunte a essas pessoas se a consciência da sociedade também nos considera a todos humanos iguais e homogêneos. Pergunte se a polícia não nos diferencia, se eles não se encolhem agarrados a seus pertences quando se deparam com um humano independente da cor ou se nosso país, alegadamente igualitário, trouxe os negros pra cá em excursão ou escravizados. Pense em qual desses grupos humanos recebe logo ofensas quanto à sua cor numa discussão de fila de ônibus qualquer (pra ter noção do quão corriqueiro o racismo pode se manifestar). É justamente pra isso que serve o 20 de novembro, pra pensarmos em como estamos e o que faremos para melhorar nossa situação.

Fernando é negro, jornalista, sambista, sarcástico e um pretenso auto-proclamado observador da problemática contemporânea.

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