Joaquim Barbosa e as Cotas Raciais





Por Fernando Garcia, do blog Divagar é preciso (http://garciarama.blogspot.com.br/)
, para +Preta Gorda



“Cotas? Não, obrigado, eu estudei!”. A frase que você acabou de ler já foi usada junto a uma foto de Joaquim Barbosa, juiz, negro e presidente do STF. É óbvio que isso foi usado de forma tendenciosa para se associar um negro de destaque a uma condição de prestígio e autoridade, mas não para enaltecê-lo, e sim, para desqualificar a importância e o verdadeiro sentido das cotas raciais. A seguir, vou explicar como só aquela frase do início carrega tanta ignorância que chega a ser poético, pois, há muitas camadas a serem compreendidas. Aliás, tantas camadas no significado da frase, que é até um paradoxo, pois, sabemos, a ignorância não tem essa profundidade emocional. 

Bem, comecemos pelo óbvio, cotas não são uma espécie de ‘passe livre’ em que o negro passa um cartão, digita uma senha e – ZAZ – formatura e mercado de trabalho à sua espera. Um erro proposital, mas muito do inútil, é o conservador falar de cotas como sinônimo de aprovação automática. Só nessa, acredito eu, que já derrubamos alguns mitos toscos sobre o assunto, como o suposto rebaixamento intelectual do corpo estudantil, a falsa garantia de aprovação, a ilusória formatura sem esforço e a imaginária – e apavorante – usurpação das vagas “normais” (brancas) dentro da sala de aula.

 Se fosse só pra debater a frase em si e as más intenções da montagem com Joaquim Barbosa em posição sorridente e despeitada a um falso assistencialismo, a conversa já teria acabado por aqui, mas tem mais. Tem gente contrária ao governo, por exemplo, que é contra as cotas pelo lado conservador particular e tem os que apenas são oposição política, gente que acusa o PT de querer dar o peixe, sem ensinar a pescar, em troca de votos, de uma população alienada por pequenas “esmolas” na ilusão de que são bem cuidados pelo papai Brasil. Confesso que já tive uma certa aversão aos ‘bolsas-benefício’, mas a grande verdade é que são duas medidas distintas que precisam caminhar juntas: O imediatismo dos ‘bolsas-...’ e o médio/longo prazo das cotas. Não dá pra pedir ao irmão pobre pra esperar até que o país seja justo, pois, desculpe o clichê – muito pertinente - quem tem fome, tem pressa. Assim como não dá pra esperar que esse irmão saia da miséria e vá direto pra uma cadeira na UFRJ, no Banco do Brasil, por exemplo.
 
Já notamos o desprezo pelo negro e pelo pobre em geral, pois, a população é chamada de preguiçosa por receber os ‘bolsas’, são acusados de se fazer de coitadinhos e são cobrados que tentem se sair bem por pura meritocracia. Olha quanta burrice!! Então ignoram – por maldade e por alienação – que o pobre não tem, nem de longe, a mesma condição de disputar de igual pra igual com o rico, e não é por causa do intelecto, pois, é comprovado que cotistas obtêm ótimos rendimentos. É pelos obstáculos econômicos, raciais e sociais enfrentados, ao passo que, da classe média pra cima, a população já começa com menos N problemas a enfrentar. Não vou me aprofundar na questão de crime hediondo contra a humanidade – escravidão – que justifica, além de social – o resgate racial, passemos para mais um ponto analisado da frase de início.

Joaquim Barbosa é notável por chegar onde chegou sendo negro e de origem pobre (porque ‘humilde’ não é sinônimo de pobre, nem vice-e-versa), mas estão querendo usar uma exceção como se fosse regra. Pr’aquele negro chegar lá, outros milhões não puderam sonhar nem em um emprego fixo , de carteira assinada. Não dão chances e a tal meritocracia mal funciona pra um branco na classe média. Numa população de mais de 50% negra, um, UM (isso mesmo, APENAS UM!), chegou ao ‘topo’ e querem mandar essa de “viu, é só se esforçar que vocês conseguem”. É demais pra mim, mas antes que eu estoure de dor de cabeça com esses absurdos, só posso esperar mesmo esse pensamento besta de uma galera que chega ao cúmulo de criticar o Esquenta como uma tentativa de o negro e pobre levar sua cultura-lixo ao Brasil em plena tarde de domingo... Se eles soubessem que o programa tem muito mais a ideologia ‘deles’ do que a ‘nossa’, mas enfim, o desespero de ver mais do que um negro ao redor deve inibir o pouco pensamento dessa gente.


Aliás, o próprio Barbosa já comentou que o Itamaraty, por exemplo, é um órgão para o qual tentou vaga, mas foi submetido a um processo subjetivo de avaliação e acabou reprovado. Mesmo entidade para onde, recentemente, um estudante branco passou por ter se auto-declarado negro/pardo/índio (nessas horas, todo brasileiro tem sangue crioulo). Um adendo rápido, um dia, precisamos estabelecer a identidade pela genética, sei lá, por critérios de descendência direta de negros, ou por porcentagem de DNA negro, enfim, depender apenas do tom de pele e do apelo visual faz muita confusão e fortalece o argumento de quem é contra utilizando a visão de que cotas são só um meio de acesso fácil (infelizmente, nessas horas, a gente vê essas falhas no processo).

Pegaram uma exceção e quiseram fazer de regra, sob o discurso falsamente condescendente de que só querem que o negro e o pobre se esforcem para garantir sua ascensão, como se o sistema estivesse propício a dar espaço a todos. E ainda usam covardemente a imagem de negros pra ilustrar esse outro mito de ‘não precisamos disso, não somos incapazes’, como se cotas tivessem a ver com capacidade intelectual e não justiça de acessibilidade social. Também adoram inventar negros/pardos/índios pra dizerem essas mesmas baboseiras, mas com o diferencial de que vindo da nossa própria gente, as mentiras ganham embasamento “esse é um negro lúcido”, li recentemente num vídeo postado numa página de aversão a um certo partido político (pouco depois, estava eu sendo xingado por aquela gente, pois, diante de tamanho retardo, não fiquei sossegado enquanto não fui lá desaforá-los, perdoem-me a indelicadeza).
 
Nada com partidos políticos, pois, prefiro ser maduro e olhar o lado social e o que ele precisa do governo – e demais órgãos afins - que estiver vigorando. Se fosse pra querer derrubar reis por puro conservadorismo, eu me sentiria apenas um anarquista e não um militante.

Fernando é negro, jornalista, sambista, sarcástico e um pretenso auto-proclamado observador da problemática contemporânea.



 

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