O padrão estético de beleza como ferramenta racista.



Por: Alê de Mattos, da Preta&Gorda.

Olho pra trás, minha infância e adolescência e parece que revivo o drama de ser uma menina preta, de cabelos crespos, com corpo cheio de formas e curvas, que não se via nem na TV, muito menos na sociedade da qual fazia parte. Olho minhas fotos dessas épocas e percebo o quão cruéis as pessoas são e de como esse sistema branco com seus padrões e medidas perfeitas, nos distancia de nossa autoestima. Eu não era gorda. Nunca fui. Hoje sou, mas não era. Mas me via como se de fato fosse o tal mostro que todos diziam que eu era. 

Essa sensação era somente minha. Guardava pra mim. Mas ao mesmo tempo, era muito complicado perceber que meu cabelo jamais seria tão lisinho como o da Xuxa e das Paquitas e que meu corpo jamais seria esguio o suficiente para parar de ser olhada e analisada tão agressivamente pelas pessoas. 

Compreendemos perfeitamente que hoje, em pleno 2015, ainda sobrevivemos a práticas genocidas de uma supremacia branca, que vêm determinando todas as ações de nossa existência, conforme suas próprias necessidades. Quando falamos sobre “prática genocida”, entendemos por assassinato não tão somente físico, mas também psicológico. Para isso, o racista se vale de pequenos detalhes, quase que imperceptíveis a uma mente anestesiada, mas que implicam em total mudança de comportamento para que, essencialmente, se pareça com o que se determina correto: o padrão eurocêntrico de viver. Por causa desse padrão, entrei em dietas absurdas, tomei chás que não devia, desenvolvi hipertensão por ingerir coisas que não podia, alisei meu cabelo, enfim... Tentei me transformar no que eu não era. 

Hoje, todas essas coisas me ficam muito bem nítidas, todas as armadilhas do racista para nos aniquilar mesmo de todas as formas. Matam sua essência, matam sua história, matam sua autoestima e, com você já indefesa/o, te domina. 



Ser gorda/gordo sempre é difícil, e nem to falando de pessoas obesas somente. Estou falando de pessoas que tenham o mínimo a mais de peso que as ‘top models’, ou do artista que está em evidência na mídia. Estou falando também, de pessoas que possuem aqueles pneuzinhos na barriguinha, que tem o bracinho mais rechonchudo... Porque essas pessoas também são consideradas gordas pela nossa sociedade, e é a partir desse conceito bizarro que se dispara a ansiedade de alguém e, conseqüentemente, faz com que esta pessoa ou coma como se não houvesse amanhã para suprir algo que ela não tem, que é a aprovação social, ou, que ela definitivamente pare de comer e vá definhando aos poucos até morrer, como ocorre no caso dos/as anoréxicos/as.
Agora, ser gorda/o e preta/o é mais complicado... Um indivíduo preto, seja mulher ou homem já é visto desde o período colonial como objeto sexual. Ambos precisam ter o corpo perfeito, pois é através dele que chamam atenção. A mulher, hipersexualizada pela mídia, o homem hipersexualizado na sociedade. Se ambos, não possuem corpo escultural, somente servem como operário ou empregada doméstica. Para trabalhos dentro das indústrias, multinacionais, empresas de grande e médio porte existe todo um padrão a ser seguido: A mulher com cabelo alisado, magra, “gostosa”. O homem de barba feita, cabeça raspada, etc.

Um exemplo disso de como o branco e seu padrão eurocêntrico nos inferioriza, é a nossa irmã Saartjie (Sarah) Baartman, chamada de “Venus Negra” ou “Venus Hotentonte”, nascida no seio de uma família khoisan no vale do Rio Gamtoos, na atual província do Cabo Oriental, África do Sul.

“...Saartjie foi para Londres em 1810 e viajou por toda o Reino Unido exibindo as suas dimensões corporais «inusitadas» (segundo a perspetiva europeia), o que levou à opinião generalizada de que estas eram típicas entre os hotentotes. Mediante um pagamento extra, os seus exibidores permitiam aos visitantes tocar-lhe as nádegas, cujo invulgar volume (esteatopigia) parecia estranho e perturbador ao europeu da época.
Por outro lado, Saartjie tinha  longos lábios da genitália, característica de algumas Khoisan. Em vida, Saartjie nunca permitiu que este seu derradeiro traço fosse exibido.
A sua exibição em Londres causou escândalo, tendo a sociedade filantrópica African Association criticado a iniciativa e lançado um processo em tribunal. Durante o seu depoimento, Sarah Baartman declarou, em holandês, não se considerar vítima de coação e ser seu perfeito entendimento que lhe cabia metade da receita das exibições. O tribunal decidiu arquivar o caso, mas o acórdão não foi satisfatório, devido a contradições com outras investigações, pelo que a continuação do espetáculo em Londres tornou-se impossível.
No final de 1814, Saartjie foi vendida a um francês, domador de animais, que viu nela uma oportunidade de enriquecimento fácil. Considerando que a adquirira como prostituta ou escrava, o novo dono mantinha-a em condições muito mais duras. Foi exposta em Paris, tendo de aceitar exibir-se completamente nua, o que contrariava o seu voto de jamais exibir os órgãos genitais. As celebrações da reentronização de Napoleão Bonaparte no início de 1815 incluíram festas noturnas. A exposição manteve-se aberta durante toda a noite e os muitos visitantes bêbados divertiram-se apalpando o corpo da indefesa mulher.
Foi depois exposta a multidões, que zombavam dela. Era alvo de caricaturas, mas chamou também o interesse de cientistas e pintores. O anatomista francês Georges Cuvier e outros naturalistas visitaram-na, tendo sido objeto de numerosas ilustrações científicas no Jardin du Roi. O corpo foi totalmente investigado e medido, com registo do tamanho das nádegas, do clitóris, dos lábios e dos mamilos para museus e institutos zoológicos e científicos. Com a nova derrota de Napoleão, o fim do seu governo e a ocupação da França pelas tropas aliadas em junho de 1815, as exposições tornaram-se impossíveis. Saartje foi levada a prostituir-se e tornou-se alcoólica.
Desde sua ascensão à fama, o corpo de Baartman foi usado para definir uma fronteira entre a mulher africana "anormal" e a mulher branca "normal". O fato de que ela tinha nádegas protuberantes e uma sociedade lábios menores estendidos a fez ser considerada como uma "mulher selvagem". Suas "anomalias", como Georges Cuvier menciona em The Gender and Science Reader, faziam ela se parecer com tudo, menos com uma mulher branca. Ela tinha uma estrutura mandibular peculiar, um queixo curto e um nariz achatado, que se assemelhava ao de um "negro". Ela então foi considerada parte da "raça negra", o que na época era considerado o menor tipo de seres humanos. Ela às vezes era comparada a um orangotango...”
The Gender and Science Reader ed. Muriel Lederman and Ingrid Bartsch. New York, Routledge, 2001

Como preta e gorda, percebo também dentro do meio Plus Size, um racismo absoluto. Visualizei isso quando eu freqüentava grupos de Orkut, depois Facebook, chats e via como as manifestações elogiosas eram feitas para mulheres brancas e mulheres pretas. Sempre as pretas ficavam invisíveis aos olhos das pessoas, mulheres e homens.
Vejo também as propagandas, dentro do universo Plus, as modelos todas em sua grande maioria brancas, e as pretas, como sempre AINDA não se vêem, não tem espelhos.
Existem concursos, tal como o Mr. Mundo, mas pergunta se tem algum homem preto... Claro que não!
Isso tem um motivo: existe um padrão, e ele é branco. O padrão estético de beleza é racista. Nascer com fenótipo africano no Brasil, é sinônimo de feiúra, de marginalização e de descaso.
A partir disso, a partir dessa percepção que eu consegui ter do mundo ao meu redor, eu consegui perceber com muita clareza, que eu... não tenho nenhum problema.  Eu sou perfeita. No mundo existem pessoas de diversos tamanhos e formas, de costumes e culturas para além do ‘universo perfeitinho branco’. Eu não preciso modificar meu corpo porque meus cabelos são crespos pelo mesmo motivo que o branco tem cabelo liso. Meu corpo é curvilíneo pelo mesmo motivo que o branco por padrão não tem curvas. A cor da minha pele é preta pelo mesmo motivo que a pele dos outros é branca. Eu, tenho em meu fenótipo a assinatura dos ancestrais e não há nada de errado com isso.
O problema está essencialmente no mundo que o branco criou para a coexistência dele, no qual ele me exclui o tempo todo e usa de inúmeras ferramentas para que eu possa, por mim mesma, não ser inserida em todos os contextos de vida que ele mantém.
A grande sacada, é que eu quero viver nesse mundo que o branco criou. Eu não preciso parecer com o branco. Eu não preciso me adequar ao branco. Eu preciso olhar no espelho, perceber, amar e respeitar quem eu sou, como eu sou e todos os aspectos que me proporcionaram ser uma mulher descendente de africanos.
Quando temos essa percepção, quando simplesmente nos tornamos auto-suficientes e nos empoderamos, esse padrão é quebrado, a luta contra o racismo ganha forças e coxas grossas, barriguinhas, seios fartos, quadris largos não será mais sinônimos de vulgaridade, indisciplina, relaxamento, como algumas pessoas costumam qualificar nossos corpos.
Ame-se!
África esteve e está aqui e em cada pedacinho de nós. Somos resistência.

4P.



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