Quando parei de mandar beijos





Por: Taís Espírito Santo
Num dia qualquer uma pessoa me mandou beijos e eu retribui com um aceno e um sorriso meio amarelado; em outra ocasião aconteceu uma cena parecida: despedindo de uma amiga, ela me manda um beijo de longe e eu retribuo do mesmo jeito, um aceno meio sem jeito e um sorriso mais sem graça ainda. Isso me soou tão nada a ver tão sem lógica. Ao mesmo tempo em que eu queria retribuir o beijo eu não conseguia. Parecia que alguma coisa em mim travava e reparei que fazia e faço isso sempre.
Estou lendo um livro que fala sobre os traumas, os acontecimentos de infância que nos fazem serem os adultos de hoje, aproveitei o ensejo e essa memória recente desses fatos corriqueiros para praticar esse exercício. Pensei, analisei, tentei recordar a minha relação com meus amigos da escola, minha família, enfim tudo. Queria porque queria responder a uma pergunta que estava me rondando: quando parei de mandar beijos? Simples assim. Sabe quando uma pessoa manda beijo pelo ar para outra? Então, algo tão simples, rápido e indolor e todo mundo faz? Quer dizer, quase todo mundo, eu não consigo fazer isto, na verdade, mesmo que eu tente, algo sempre me atrapalha. Mas  fiz disso um exercício diário. Parei para refletir e agir sobre.
Estudei em colégio particular, meu pai era o diretor da escola e lá era bolsista, acredito que na maioria delas oferecem bolsa para filhos de funcionários, mas isto não vem ao caso. Tinha poucos negros no colégio, principalmente na minha sala, e a única que sempre falavam que era “negra negra” era eu, as outras eram moreninhas ou não tão escuras assim. Para responder essa questão que me intrigava muito, fui na minha caixinha de lembranças, lembrei de como eu era tratada na escola, lembrei da minha afirmação em ser negra, do sentimento de pertencimento a essa “raça”. Recordei de quando era criança, não lembro ao certo a idade, devia ter uns 11 ou 12 anos e eu estava na escola. Hora do recreio, crianças correndo desesperadas para pegarem o seu lugar na fila da cantina. Era um empurra, um puxa, adrenalina. Um pouco antes da minha vez, minhas amigas e eu estávamos na fila, na verdade uma parte delas, pois sempre tive amizade com todos. A tia da cantina estava com uma revista no balcão, não me lembro se era Veja, Istoé, ou outra revista, só lembro que tinha a boca de três pessoas de etnias diferentes: um branco, um negro e um índio. Eu fiquei olhando a revista, identificando as bocas, me reconhecendo ali. Nisso, a tia da cantina pegou a revista, viu a boca do negro e falou logo: “nossa, que boca feia, grande, boca preta, olha isso aqui no meio, que nojo. Sempre achei boca de negro nojenta. Eu não beijaria uma boca dessas!” E vi todos rindo, olhando, “zoando” a boca do meu semelhante que até então não achava que tinha uma diferença tão gritante em relação a minha.



 Foi a primeira vez que me dei conta que a minha boca poderia ser algo tão asqueroso e nojento, não tinha noção que uma boca poderia causar em alguém um repudio tão grande. E depois desse episódio percebi que realmente minha boca era grande demais, era feia, estranha, me sentia um monstro perante todos. Muitas vezes tentava “afiná-la” fazendo meio que um truque com a minha boca, lembro-me que pedia aos céus para que eu tivesse alguma doença muito grave na boca e que eu tivesse que reduzi-la, deixando a normal e bonita (graças aos deuses isto não foi atendido). Logo depois, não sei se já reparavam antes, mas eu não dava muitos créditos por não me atingir tanto, todos começaram a notar o tamanho da minha boca.  Vieram as piadinhas, as músicas, as gracinhas das meninas, a zoação dos meninos, daquele gatinho que eu gostava muito. E o meu desejo só ia aumentando, não me sentia bonita, chorava muitas vezes em frente ao espelho, quando chegava ao lugar colocava minhas mãos na frente deste monstro para que ninguém notasse, mas não adiantava, sempre era notado, sempre viam, reparavam, riam. Reconhecia-me e não me amava, sabia que era negra e também já sabia o peso em ser negra numa sociedade extremamente racista onde tudo que o negro fez, construiu, tudo que ele é, não tem nenhuma beleza, importância. Mas fui crescendo, tomando consciência do meu valor, do meu papel, e a reconstrução desta minha história foi muito interessante e surpreendente.
  Até o ensino médio minha boca era vista como alguma coisa ruim, feia, engraçada. Tinha música, piadas. Eu nunca conseguia o olhar dos meninos, quando recebia era sempre o susto, a zombação. Além disso, sempre gostei de tranças, de penteados “afros”, que são também uma marca da minha negritude e não queria passar pelo processo de embranquecimento, mesmo sem conhecer esta palavra tão a fundo. Contudo, quando entrei na faculdade, minha cabeça deu um nó: ao invés de gracinhas maldosas eu recebia elogios pela minha boca, minhas tranças e tudo que era meu. Eu consegui ser notada, chamada de bonita, linda, estilosa. Beição passou a ser chamada de lábios carnudos, a ser uma mulher inteligente, charmosa, bela. 
O engraçado é que mesmo diante dessas mudanças, continuei a não mandar beijos, na verdade não tinha notado que não fazia isso, só recentemente que reparei. A partir deste momento, este exercício tem sido constante. Espero um dia, já que agora sei o que me prende, poder mandar beijos livremente, mandar beijos pelo ar, livre, leve e solta.

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