Ciências Sociais Africêntricas para Libertação Humana


 Na’im Akbar 
Tradução: Mpenzi Rocha 

A ciência social representa tanto a expressão de ideologia de povo como faz uma defesa da mesma (Asante, 1980). Na medida em que essa ideologia contém elementos implícitos de opressão, essa ciência social em particular é de fato um instrumento de opressão. Nobles (1978a) discute o fato de que "a ciência ocidental, em particular a ciência social, como as instituições econômicas e políticas, tornou-se um instrumento destinado a refletir a cultura do opressor e a permitir a dominação e a opressão mais eficientes dos povos africanos". Consequentemente, a aceitação acrítica dos pressupostos da ciência ocidental pelos povos africanos é participar de nossa própria dominação e opressão. Nobles, no mesmo debate, continua justificando a necessidade de um método da ciência social que reflita nossa realidade cultural. Nosso objetivo nesta discussão é identificar algumas características desta ciência ocidental e sugerir alguns pressupostos alternativos para o estabelecimento de uma ciência social africana. 

Os cientistas sociais africanos não conseguiram entender o fato de que as ferramentas que adquiriram no seu curso de formação de tradição ocidental os deixaram mal equipados para lidar com a tarefa fundamental de libertar os povos africanos social, politica, econômica e psicologicamente. O aparente paradoxo entre um número crescente de africanos treinados nas ciências sociais paralelamente ao aumento exponencial nos problemas sociais africanos é resolvido quando entendemos o caráter implícito do treinamento que os cientistas sociais africanos receberam. Novamente Nobles (1978a) em sua perspicaz discussão, caracteriza o cientista social africano que opera a partir desse quadro alienígena como sendo "encarcerado conceitualmente". E observa astutamente: 

 "A visão de mundo, os pressupostos normativos e o quadro referencial sobre qual o paradigma se baseia, devem, como a ciência lhe serve, ser consistentes com a cultura e a substância cultural das pessoas. Quando o paradigma é inconsistente com a definição cultural dos fenômenos, as pessoas que o usam para avaliar e/ou estimar esses fenômenos se tornam essencialmente encarcerados conceitualmente”. 

Tal "encarceramento" prejudica seriamente o cientista social africano no seu objetivo de libertação humana. 

O cientista social "cientificamente encarcerado" comprou a afirmação feita pelos cientistas sociais ocidentais de que esta ciência é objetiva e consequentemente uma forma superior de investigação. Jacob Carruthers (1972) argumenta contra a validade da ciência em sua discussão magistral "Ciência e Oposição". Este autor mostrou em sua obra que a abordagem "objetiva" não evita valores porque a objetividade em si já é um valor. Quando um observador escolhe suspender de suas observações determinados níveis de reação, então este é um julgamento de valor. Este é um valor crítico porque muitas vezes envolve o descarte de certas fontes importantes de informações podendo alterar substancialmente o que é percebido como real. Ornstein (1981) oferece suporte para este ponto de vista em sua observação: 

“A ciência como uma forma de conhecimento envolve uma limitação da hipótese de trabalho. A essência de um bom experimento é a exclusão bem sucedida [grifo meu]. Um fator pode ser manipulado enquanto alguns processos são mensurados [...] o método da psicologia tornou-se o objetivo; Essa confusão levou nos últimos sessenta anos a uma "subestimação radical" das possibilidades”.  

Se tal metodologia resultou em uma "subestimação radical" das possibilidades para os ocidentais, para quem esta última destina-se a beneficiar, não se pode mensurar a extensão dessa subestimação em relação às pessoas que pretendem oprimir. 


CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA SOCIAL EURO-AMERICANA


O modelo que caracteriza a ciência social euro-americana pode ser mais sucintamente visto em seu padrão de normalidade: classe média, masculino caucasiano, de descendência europeia. Quanto mais se aproxima desse modelo em aparência, valores e comportamento, mais considerado "normal". A conclusão inevitável de tais pressupostos de normalidade é um estigma de desvio para alguém que contraria essa forma. Na verdade, quanto mais distante ou distinto desse modelo, mais patológico é considerado. A vantagem óbvia para os euro-americanos é que tais normas confirmam sua realidade como a realidade e demonstram sua superioridade como um "fato" cientificamente baseado. A história da ciência social ocidental está repleta de evidências dessa assunção etnocêntrica de normalidade. A sociologia identificou a "classe média" como o grupo normativo. A antropologia identificou vários povos não-ocidentais como selvagens, primitivos ou incivilizados. A literatura psicológica dos últimos 100 anos baseou-se em observações principalmente sobre europeus, exclusivamente caucasianos, predominantemente homens, e como Robert Guthrie (1976) observou, "até o rato era branco". As formulações da maioria dos estudiosos mais notáveis que moldaram o pensamento da psicologia euro-americana como Freud, Jung, G. Stanley Hall, William McDougall e B. F. Skinner afirmaram direta ou indiretamente a superioridade de raças europeias sobre raças não-europeias.  

Ignorando os pressupostos etnocêntricos da ciência social ocidental, muitos estudiosos africanos se tornaram defensores de sua própria inferioridade, utilizando essas teorias e suas normas implícitas. As pesquisas e bolsas de estudos desses cientistas sociais afro-americanos confirmaram as afirmações negativas de seus homólogos euro-americanos. Isso levou a uma preocupação com o desvio, a deficiência e um envolvimento excessivo com a "análise da vítima". Os estudiosos africanos nativos do continente africano frequentemente assumiram a posição do estudioso neocolonialista que defende o "desenvolvimento" de seu povo a partir da adoção de traços pessoais e padrões sociais europeus (Fanon, 1967, 1968). Os estudiosos afro-americanos tornaram-se os novos capitães do mato e os novos opressores ao defender o sucesso por identificação ou integração com os euro-americanos como a única base para o êxito. Nossa posição não é minimizar ou negar a presença de problemas sociais e pessoais desenfreados como consequência de décadas de colonialismo e/ou opressão e escravidão. Esse extremo sofrimento humano é inegável. O problema é que somos extremamente limitados na capacidade de alterar qualquer uma dessas condições por causa do "encarceramento conceitual" que Nobles descreveu e que identificamos nesta discussão como uma espécie de estagnação paradigmática. 

Uma dificuldade semelhante é a identificação negativa com o cientista social euro-americano. Tal perspectiva leva a reações bastante extremas contra o seu modelo. Isso advoga que tudo o que tenha sido visto como positivo no modelo europeu deve necessariamente ser visto como negativo em um modelo preto. Tudo o que foi visto como negativo sobre os negros da perspectiva do modelo branco é assumido automaticamente como positivo no modelo preto. O ponto desta discussão, embora identifique limitações reais com a abordagem eurocêntrica, não presume a abordagem africêntrica como seu inverso. O modelo africêntrico deve ser visto como uma perspectiva independente do modelo eurocêntrico; Se considerado dessa forma também se tornará meramente reativo e, portanto, persistentemente dependente do modelo europeu. 

Os modelos fornecem as definições que dão origem a metodologias. Na verdade, modelos ou paradigmas circunscrevem muito claramente não somente as questões "perguntáveis", mas também as formas de observação ou metodologias. Ornstein (1981) observa: 

“Qualquer comunidade de pessoas mantém em comum certos pressupostos sobre a realidade. Cada comunidade científica de físicos, matemáticos, psicólogos ou qualquer outra compartilha um conjunto adicional de pressupostos implícitos, chamado de paradigma. O paradigma é a concepção compartilhada do que seria possível, os limites de uma investigação aceitável, os casos limitantes.”  

As metodologias fazem sentido, então, apenas à luz dos modelos que os criam. Na verdade, Curtis Banks (1980) argumenta que as metodologias são meramente formas de confirmar modelos preexistentes. Portanto, a compreensão do paradigma eurocêntrico é essencial para a compreensão da sua metodologia. Em adição ao modelo sendo normativamente baseado em homens brancos caucasianos, classe média, de descendência europeia, também possui outras características como ser individualista, racionalista e materialista. Devemos demonstrar brevemente como cada uma delas, particularmente a exclusão de outras, torna a psicologia eurocêntrica essencialmente inútil como instrumento de libertação humana.  

O foco individualista deste modelo funciona com a suposição de que a identidade humana está essencialmente no indivíduo. Sua identidade coletiva tem significância secundária na conceitualização de pessoa. Como consequência, grande parte da psicologia ocidental se concentrou principalmente nas diferenças individuais; mesmo a sociologia que lida com o impacto da sociedade sobre o indivíduo e a história com uma sequência de heróis individuais. Tão fundamental é a suposição de que o sujeito para consideração primária é o indivíduo, que a maioria dos pensadores tem dificuldade em conceber uma abordagem alternativa sem sacrificar ou violar a ilusão suprema de uma existência humana autônoma e a liberdade sagrada do ser ilusório chamado de "indivíduo". Existe, de fato, uma controvérsia crescente entre os psicólogos euro-americanos quanto à questão se houve ou não uma excessiva afirmação do papel da independência como um atributo desejável dos seres humanos. Os conceitos psicológicos de locus de controle externo, dependência e submissão são vistos como características de personalidade negativas. Tal negação é apenas uma afirmação camuflada convenientemente em função do ideal americano do robusto imigrante europeu individualista que "sozinho conquistou esta região selvagem e estabeleceu este excelente país". A ideia de primazia do indivíduo e suas motivações únicas, e a família nuclear e sua exclusividade são conceitos fundamentais na ciência social euroamericana.  

Outra característica desse modelo que estende a noção de individualismo é o desejo de competição. A teoria econômica americana fundamental é aquela que glorifica a concorrência como essencial para o progresso social. Os indivíduos que mais funcionam eficientemente são aqueles que são mais assertivos e competitivos. A "necessidade de realização" (ver teoria de McClelland) é louvada como o prêmio do progresso ocidental. Os seres humanos foram assumidos axiomaticamente para estarem em conflito e a realização humana é consumada pelo triunfo dos fracos sobre os fortes. O livro clássico de McClelland (1961), The Achieving Society, concluiu que um povo poderia ter o status de civilizado  (isto é, industrializado) apenas se suas motivações fossem caracterizadas por uma alta necessidade de realização. Previsivelmente seus dados mostraram que pessoas não-caucasianas, nãoeuropeias, não-masculinas e que não pertencem a classe média estão na parte inferior desta característica individual fundamental. 

A humanidade oprimida não conseguiu perceber que, no traje da "ciência", o mundo ocidental utilizou um paradigma social e psicológico que funcione para legitimar a afirmação de sua superioridade racial e nacional. O que foi assumido como um sistema apolítico e objetivo é, de fato, a essência da política euro-americana e caucasiana. 

Afirmar que a ciência social euro-americana é racionalista implica que a ciência pode ser irracional. Certamente, essa não é nossa intenção. É claro que a ciência como concebida na tradição ocidental tem algumas limitações frequentemente não reconhecidas. Ornstein (1981) observa: "A ciência como um modo de conhecimento envolve uma limitação na indagação". Por causa de suas limitações, aspectos críticos do processo social humano são muitas vezes desconsiderados. Ornstein continua: 

“É incompleto sustentar que o conhecimento é exclusivamente racional. Mesmo a investigação científica, a mais racional e lógica de nossas atividades, não poderia prosseguir sem a presença de outro tipo de conhecimento [...] Os pesquisadores científicos atuam sobre o conhecimento pessoal, tendências, palpites, intuição. É o gênio do método científico do pensamento arracional que se traduz no modo racional e explícito, para que os outros possam segui-lo.” 

A designação alternativa de Ornstein para o sistema racional como “arracional” e não irracional me parece apropriada.  

Uma das limitações deste componente racionalista do modelo euroamericano da ciência social é a exclusão de sentimentos ou afetos. A emoção é considerada irrelevante, na pior das hipóteses, e prejudicial, na melhor das hipóteses, no esforço científico. Grande energia é utilizada para manter a 
objetividade e excluir qualquer componente afetivo da pesquisa. A consequência é que tal cientista desenvolve uma insensibilidade passiva que permite e até mesmo tolera um sistema de escravidão americano, uma Auschwitz ou mesmo uma bomba de nêutrons, descrevendo calmamente sua capacidade de destruir todas as pessoas, mas deixando os edifícios e as estruturas físicas em pé. O economista não precisa abordar os elementos de sua teoria que definem a opulência excessiva de poucos ser baseada na privação de muitos. O pesquisador que oferece qualquer demonstração de envolvimento afetivo ou emocional em seu assunto é visto como inapropriado, distraído ou apenas irracional e, portanto, merece ser desconsiderado. Ornstein (1981) faz uma observação pertinente neste ponto: 

“Nós retiramos a relevância e até desvalorizamos os modos de consciência arracionais e as formas não-verbais de consciência. A educação consiste predominantemente em "leitura", "forma da escrita" e "aritmética", e nos ensinamos muito pouco sobre nossas emoções, nossos corpos, nossas capacidades intuitivas.” 

Devido ao nosso eu emocional "não educado", geralmente permanecemos idiotas emocionais e não conseguimos obter os benefícios do conhecimento que vem dessa modalidade.  

A característica final desse modelo, pelo menos para os propósitos desta discussão, é seu foco materialista. Supõe-se que as características externas são as essenciais. Se essas características são designadas como "dados comportamentais" ou "dados de classe", a suposição é que o que é diretamente observável é o "mais real". Portanto, o que é reconhecível e o que é relevante são restritos a algum aspecto do material. Ornstein (1981) novamente faz uma observação relevante para essa questão. Ele afirma: 

“Uma ênfase estrita no conhecimento verbal e intelectual eliminou muito do que é ou poderia ser legítimo para estudo na psicologia contemporânea - sistemas de meditação "esotéricos" são muito mal interpretados; A existência de "realidades incomuns" não são estudadas porque não se encaixam no paradigma dominante e obviamente fazem parte dos fenômenos chamados "paranormais". 

Da perspectiva da ciência social ocidental, as descrições desprezíveis dos povos não-ocidentais nascem quando as inferências são feitas sobre o ser humano unicamente com base em dados materiais. A remoção de informações esotéricas e imateriais resultaram na descrição de muitas práticas complexas de pessoas não-ocidentais como "supersticiosas, pagãs ou primitivas". A tendência de separar o comportamento do contexto mais amplo das dimensões espiritual e esotérica da realidade transforma as atividades humanas altamente significativas e repletas de sentido em atividades sem sentido. Não é surpreendente que as pessoas com aparências externas menos opulentas sejam julgadas inferiores, incivilizadas, ininteligentes e bárbaras, mesmo quando elas superam grande parte dos afluentes materiais na justiça, caridade, compaixão e paz. 

Em resumo, o modelo ou paradigma euro-americano da ciência social vê as características do homem caucasiano, de classe média, de descendência européia, como a norma paradigmática para os seres humanos. O individualismo, o racionalismo e o materialismo são outras características deste modelo que direcionam a percepção e as metodologias da ciência euroamericana. Embora esses componentes em qualquer modelo de funcionamento humano sejam perigosos, a limitação da ciência decorre da dependência exclusiva dessas formas de observação. A premissa desta discussão é que a confiança exclusiva nesses aspectos torna a ciência social ocidental uma ferramenta efetiva de opressão e exploração humana. A opressão é mais evidente entre aqueles menos afins ao modelo paradigmático que descrevemos acima. A principal objeção é que todas essas características das ciências sociais euro-americanas a transformam em um instrumento ineficaz para o crescimento e libertação humana. Não devemos nos surpreender com a premissa de que a Europa e a América têm o maior número de cientistas sociais no mundo e um maior número de problemas sociais e humanos do que qualquer outra nação. Por exemplo, abuso sexual de crianças, violações, perversões sexuais bizarras, abuso de drogas, abuso infantil e até mesmo conflitos raciais são ocorrências praticamente desconhecidas na maioria das partes do mundo, mas atingem proporções endêmicas à medida que se aproxima as características do modelo euro-americano. A importância das ciências sociais euro-americanas na provisão de remédios para esses problemas é previsível à medida que se avalia esse sistema como modelo para o crescimento e a libertação do ser humano. 

As metodologias emergentes deste modelo são aquelas que reafirmam seus pressupostos básicos. O método é um "objetivo", o foco é sobre as diferenças individuais e os dados são expressos através de um sistema de contagem e medida característico dos fenômenos materiais. 


O MODELO AFRICÊNTRICO DE CIÊNCIA SOCIAL 


 Nossa discussão sobre um modelo africêntrico cresce a partir de vários pressupostos. Não argumentamos que o modelo para a libertação humana deva substituir o padrão de um homem negro de descendência africana criado pelo homem caucasiano de descendência europeia. Essa concretização apenas substituiria um modelo limitado por outro. O termo "africêntrico" é utilizado na perspectiva de que África constitui o contexto primordial para o crescimento e a libertação do ser humano. Os afro-americanos representam os exemplos mais extremos de vítimas da opressão humana e seriam o grupo mais apropriado para demonstrar uma psicologia da libertação. Portanto, nosso foco está na concepção ontológica africana de homem como um modelo de humanidade em geral, uma vez que África representa provavelmente o conceito mais "naturalmente humano". Embora o modelo tenha relevância específica para a libertação nacional de todos os povos africanos na diáspora, é geralmente aplicável à transformação dos seres humanos em qualquer contexto nacional. 

Uma das dificuldades decorrentes da descrição deste modelo em um contexto comparativo com o modelo eurocêntrico é que modelo africêntrico implica na representação de um contraste ou reação ao anteriormente citado. Como já observamos acima, este definitivamente não é o caso do modelo africêntrico que antecede o eurocêntrico, sendo este último apenas uma devolução conceitual de seu antecessor. Por razões de coesão e maior clareza, nos enfocaremos em alguns aspectos do modelo africêntrico que demonstram sua força relativa às características da ciência social ocidental, que já descrevemos. 


NORMA AFRICÊNTRICA 


A norma do modelo africêntrico é a natureza. As características normativas desta ciência social baseiam-se na requintada ordem da natureza humana. Por mais vago que isso possa parecer e certamente algo "não científico" na tradição ocidental, é consideravelmente mais consistente com a tradição filosófica, religiosa e simbólica das sociedades humanas mais duradouras. Embora concretamente indemonstrável, a "natureza humana" atribui uma ordem que é universal e absoluta. Na verdade, é metafísico. A adaptação e a aberração humanas não devem ser confundidas com o potencial humano. Os argumentos a este respeito foram desenvolvidos por ocidentais notáveis como Maslow, May, Rogers e muitos outros da tradição humanista. Embora falte precisão na linguagem intrincada, especificamente do cientista social ocidental, ela é mais consistente com o holístico, com o polideterminismo multidimensional do ser humano. A simplificação excessiva da ciência social ocidental, embora impressionantemente mais gerenciável, é desastrosamente míope na sua exclusão de realidades flagrantemente causais. O positivismo lógico e o reducionismo tentaram fazer homens e mulheres completamente racionais e minuciosos o suficiente para caber em um modelo micro de uma visão unidimensional da humanidade. O modelo africêntrico se sente confortável com concepções globais e metafísicas e oferece um modelo macro que realmente excede a  manipulação do observador cujo objeto de observação é, em última instância, ele /ela mesmo/a. 

O exemplo de um conceito extraído deste modelo naturalista é o de sobrevivência. Uma característica consistente da ordem natural é a sua tendência de preservar-se. A autopreservação foi identificada como a "primeira lei da natureza". Essa "lei" é derivada do conhecimento popular e não do fato científico, embora seja o tipo de ditado, sabedoria intuitiva ou popular que guie a estruturação da ciência ocidental. O teórico africêntrico assume tal pressuposto como um elemento de seu paradigma e procura observar a consistência com que os fenômenos obedecem a essa "lei". Em seguida, identifica uma norma que seja abrangente e holística, o que diz que a normalidade é qualquer processo que opera em consistência com a tendência do caráter auto-conservador da natureza. Tal conclusão não é diferente da afirmação eminentemente profunda da "Lei da relatividade", que sustenta que a matéria não pode ser criada nem destruída, isto é, é autoconservadora, observando a primeira lei da natureza.  

Os teóricos da filosofia e psicologia africana, especificamente Mbiti (1970) e Nobles (1980), identificaram um princípio da ciência social africana que eles nominaram como princípio de sobrevivência coletiva ou "sobrevivência da tribo". As observações do comportamento humano podem ser entendidas como normais ou anormais na medida em que aderem a este princípio. Os comportamentos que mantêm, aumentam ou asseguram a "sobrevivência da tribo" são normais. Os comportamentos que ameaçam a sobrevivência da tribo são anormais. Novamente, como o Nobles ilustrou, a família "normal" não é nuclear (ou seja, os modelos familiares eurocêntricos) nem estendida, como afirmam algumas réplicas da “análise da vítima” eurocêntrica. A família normal é de fato flexível ou "elástica" (Nobles, 1978b), capaz de maximizar o objetivo natural fundamental da sua sobrevivência.  Essa família pode ser tão eficazmente nuclear como estendida, dependendo de quais tipos de circunstâncias afetaram a sobrevivência da família (tribo). O mesmo ponto é verdadeiro para as funções dentro da família. Segundo Nobles (1978b): 

“Funcionalmente, o desempenho de suas funções (familiares) seria fluido ou elástico. Ou seja, o desempenho de uma função específica faz ou pode "expandir" para muitas outras funções.”. 

Essa caracterização do funcionamento familiar começa a sugerir um pragmatismo. É funcional, mas o pragmatismo é restrito nas diretrizes da ordem natural. A sobrevivência da família exige segurança contra danos; Não exige dominação para se proteger. Embora haja exemplos bárbaros de orientações predadoras que existem em várias arenas da natureza, devido a certas capacidades "morais" dos seres humanos, tais qualidades não podem ser justificadas como base para a opressão humana. Este componente "moral" equilibrável será discutido mais detalhadamente abaixo. 


CARACTERÍSTICAS DO MODELO AFRICÊNTRICO 


A abordagem africêntica da ciência social concebe a si mesma como um fenômeno coletivo. Não nega a "singularidade", mas nega a noção isolada de individualismo, isto é, que a pessoa pode ser entendida independentemente de outras pessoas. O "outro" não é apenas um espelho do eu no sentido de Cooley, mas o "outro" é uma expressão de si mesmo. O ditado fundamental que surge da filosofia africana que capta essa experiência coletiva de si mesmo é a proposição: "Eu sou porque somos e porque somos, portanto, eu sou". (Mbiti, 1970). Essa concepção identifica a consciência coletiva como a arena adequada para a observação humana. Nobles (1980) refere-se a isso como "comunidade experiencial ou compartilhamento de uma experiência específica por um grupo de pessoas". A questão científica não é de como os indivíduos diferem, mas de que maneira as pessoas são fundamentalmente iguais. Novamente, o equilíbrio holístico não argumenta por um caráter nacional em massa, mas uma partilha de certos valores e objetivos humanos universais e o grau em que a singularidade de uma pessoa facilita esses objetivos. Por exemplo, a reprodução de seres humanos efetivos é um objetivo universal que não é violado por características individuais; Embora a liberdade individual seja circunscrita pela necessidade coletiva de realizar esse objetivo. Então, todos não precisam se reproduzir, mas todos são responsáveis pela saúde da prole da humanidade. 

Nobles (1980) sustenta que a comunidade experiencial é importante para determinar os princípios fundamentais da sociedade, como a sua crença sobre a natureza da humanidade e sobre o tipo de sociedade que os seres humanos devam criar para si. Em outras palavras, o trabalho do cientista social ao descrever, avaliar ou mesmo melhorar sociedades ou seres humanos deve ser um fenômeno coletivo e não individual. A teoria social africana atribui preeminência ao grupo, ao contrário do modelo ocidental que atribui status ao indivíduo. 

Outra característica do paradigma africêntrico é que ele identifica a essência do ser humano como espiritual. Certamente, um modelo holístico deve incluir as dimensões completas da pintura humana: física, mental e metafísica. No pensamento dualista ocidental, não só a mente e o corpo (razão e emoção) são considerados fenômenos independentes, mas existe uma tendência trinitária que considera o espírito como independente da mente e do corpo. Geralmente, no entanto, a espiritualidade é completamente desconhecida nas ciências sociais ocidentais. Cada vez mais, com a crescente ênfase no comportamento nas ciências sociais, mesmo a dimensão ou a consciência mental foram descontadas como irrelevantes para a compreensão do funcionamento humano. Em relação à abordagem eurocêntrica, os cientistas sociais africêntricos tomam um "salto quântico" quando identificam a espiritualidade como uma dimensão relevante da experiência humana.  

O conceito essencial de espiritualidade da humanidade simplesmente sugere que, quando homens e mulheres são reduzidos aos seus termos mais baixos, são invisíveis e de uma substância universal. Tal suposição implica que, em última instância, as pessoas são harmoniosamente iguais e não são diferentes da essência de tudo que há na natureza. A unicidade com a natureza é uma extensão natural deste ponto de vista que exclui os pressupostos de inevitáveis conflitos entre homens e mulheres e com a natureza. O material, por sua própria condição, é fragmentado e em conflito, obedecendo aos princípios de polaridade e tensão. Na medida em que a dimensão material dos seres humanos é vista como sua essência, o conflito é visto como axiomático para a existência humana. 

A abordagem africêntica, visando a humanidade como, em última instância, redutível a uma substância universal que é harmoniosa com todo o cosmos, implica uma bondade fundamental dos seres humanos - a bondade é a tendência da vida para melhorá-la em uma direção construtiva. As relações humanas são consideradas potencialmente compatíveis, assim como as relações entre todos os componentes facilitadores da natureza mutuamente. Consequentemente, a moral é endêmica para essa concepção do homem. O cientista social africêntrico não se intimida em afirmar que o que é o normal é bom também. A moral e a espiritualidade são inseparáveis, razão pela qual ambas as dimensões foram relegadas ao domínio do teólogo na abordagem eurocêntrica. No entanto, os valores que são explicitados na abordagem africêntrica estão implicitamente presentes na abordagem eurocêntrica. Como observamos acima, a objetividade é tanto um valor implícito quanto os valores explícitos atribuídos a um sistema subjetivo. Existe um mito amplamente aceito de objetividade entre cientistas sociais eurocêntricos. Como a espiritualidade implica ordem, harmonia, interdependência e perfectibilidade, a moral é um componente fundamental da pintura humana. A moralidade, na abordagem africêntrica, não está na forma de uma série de máximas encontradas nos sistemas morais teóricos eurocêntricos. A moral é simplesmente um reconhecimento de uma ordem natural e a normalidade é a harmonia do homem com essa ordem. 

A moral também constitui um traço unicamente humano. Representa uma capacidade para o domínio pessoal e autodirecionamento. Ao contrário das espécies animais inferiores reguladas pelo instinto, o ser humano tem a capacidade única de auto regulação. Isso exonera o ser humano de alguns dos componentes mais brutos da ordem natural. Esta forma moral permite que os seres humanos estejam na natureza, mas não sejam da natureza, no sentido de serem vítimas de alguns dos seus componentes mais destrutivos. A moralidade se torna a instrumentação do equilíbrio e, no modelo africêntrico, é um imperativo da figura humana e não uma opção. 

No entanto, o modelo africêntrico não nega a relevância da materialidade. De fato, esse modelo representa um equilíbrio entre o extremo da ontologia material e exotérica demonstrada no modelo eurocêntrico e o extremo da ontologia espiritual e esotérica representada nos modelos orientais. Este modelo permitirá validação cruzada entre experiência subjetiva e objetiva. Um exemplo desse modelo talvez seja visto no curandeiro tradicional africano. Tais curandeiros são simultaneamente herbalistas (usuários de paoder objetivo) e griots (recitadores do "eu" ou conjuradores de poder subjetivo). O curador tradicional reconheceu a interdependência da ordem moral e da ordem material. Uma violação geraria impactos em todas as dimensões da figura humana. Tal abordagem não exige uma negação do domínio material ou avanço tecnológico, mas exige um desenvolvimento equilibrado dos mundos interno e externo. Em tal mundo não se constrói grandes arranha-céus como um precipício a partir do qual os perturbados podem se jogar. Em vez disso, a habilidade de escalar as alturas da gravidade é paralela ao explorar as profundezas do espírito humano. 

 A característica final de uma ciência social africêntrica são seus pressupostos epistemológicos. Como observamos acima, o racionalismo da ciência social eurocêntrica impede o arracional, consequentemente excluindo grande parte da experiência humana. A abordagem africêntrica assume um conhecimento universal enraizado no conhecimento dos próprios seres humanos. A experiência mais direta do eu é através da emoção ou afetação. Vernon Dixon (1976) observa: 

“Pessoas africanas nascidas em África ou na diáspora conhecem a realidade predominantemente através da interação entre afeto e imagem simbólica, ou seja, a síntese desses dois fatores produzem conhecimento. Na visão de mundo "pura" africanizada da unidade do homem e do  mundo fenomenal, não existe um espaço de percepção vazio entre o eu e os fenômenos. O afeto refere-se ao sentimento de si mesmo, o eu emotivo engajado em experimentar fenômenos de forma holística.” 

Essa abordagem da africentricidade admite os símbolos e afetos como determinantes legítimos da atividade humana. As reações emocionais como um meio de conhecer e como um equilíbrio para a racionalidade são legítimos neste modelo. Da mesma forma, o significado dos símbolos na tradição junguiana como expressão de certos arquétipos coletivos também é uma abordagem de valor. Símbolos e rituais culturais (como cerimônias de nomeação e ritos da puberdade nas sociedades tradicionais) são considerados como importantes dimensões causais na experiência humana. Tais símbolos na ciência ocidental teriam pouca validade como variáveis independentes ou dependentes, mas no paradigma africêntrico, elas poderiam ser ambas as coisas. Dixon (1976) caracteriza ainda mais essa conexão afeto/simbólico observando: 

“Afeto, no entanto, não é intuição, pois o último termo significa conhecimento direto ou imediato (conhecimento instintivo) sem recorrer à inferência ou raciocínio sobre evidências. O afetivo interage com evidências, evidências sob a forma de imagens simbólicas.” 

Esse conhecimento holístico é crítico tanto em termos de estruturação da metodologia africêntrica quanto na caracterização da adequação de certas observações. Por exemplo, ao invés de definir inteligência por um teste de QI  (isto é, definindo uma metodologia e uma arena de observação), a inteligência seria definida pela adequação de uma pessoa em termos de vida e desenvolvimento. O conhecimento seria refletido no grau em que uma pessoa é capaz de manobrar um ambiente que oferece obstáculos ao seu desenvolvimento. Assim, a inteligência se refletiria no grau em que uma pessoa é capaz de manobrar um ambiente que oferece obstáculos ao seu desenvolvimento do seu "eu-coletivo". Consequentemente, a inteligência implicaria em (1) conhecimento da realidade coletiva de si mesmo, (2) o conhecimento dos obstáculos ambientais ao autodesenvolvimento (coletivo) efetivo, (3) ações iniciadas para remover ou dominar tais obstáculos e, finalmente, (4) conhecimento das Leis divinas e universais que orientam o desenvolvimento humano para o conhecimento do Criador. Uma avaliação adequada da inteligência exigiria efetivamente tocar em toda a gama de imagens simbólicas de um povo (como, palavras, gestos, tons, ritmos, rituais). Não se pode avaliar o "conhecimento" de uma pessoa sem saber com que eficácia essa pessoa se realiza enquanto ser por completo. Portanto, a possibilidade de um homem ou uma mulher avaliar um gênio com base em seu conhecimento externo, mas provando ser moralmente incapaz, não seria concebível a partir da abordagem africêntrica. Do mesmo modo, uma sociedade com tecnologia opulenta, mas em decadência social e moral não pode ser vista como uma civilização avançada ou modelo. 


CONCLUSÃO 


Africentricidade é a forma de um novo paradigma para as ciências sociais. Ela cresce com o aumento da inadequação do modelo eurocêntrico para abordar de forma adequada os problemas sociais crescentes da sociedade ocidental. Mais importante ainda, o modelo procura corrigir a função opressiva indireta desempenhada pela ciência ocidental tradicional. Embora o modelo se baseie nos princípios da filosofia tradicional africana, não exclui, em seus pressupostos fundamentais, a possibilidade de atividade normativa nas partes de pessoas de outras origens étnicas. O novo paradigma, de fato, formaliza e fornece um contexto para muitas das questões que cada vez mais são criadas pelos próprios cientistas sociais ocidentais. Teóricos como Abraham Maslow, Rollo May, Alan Watts e muitos outros das escolas existenciais e humanistas abordaram muitas das mesmas questões que são levantadas no contexto africêntrico e que são resolvidas no seu interior. 

O elemento mais importante oferecido pelo paradigma africêntrico é a oportunidade para a libertação humana genuína através do modelo de ciência social. Um objetivo da ciência social africêntrica é a libertação humana. Uma vez que trata especificamente das condições humanamente opressivas experienciadas pelos povos africanos ao longo da diáspora, tem um objetivo imediato de oferecer um instrumento para a libertação social, política, econômica e psicológica do nosso povo. A qualidade holística do modelo oferece direção não só para tal liberação social, mas também um caminho para a libertação humana em geral. 

O curso dessa libertação é através do veículo da transformação. Um modelo individualista, materialista e racionalista com a exclusão de outras modalidades limita seriamente a possibilidade de transformação humana. O potencial humano é limitado de acordo com este modelo e as pessoas podem, na melhor das hipóteses, ser modificadas, mas não transformadas. Um sistema coletivo, espiritual e afetivo/simbólico aborda um ser multidimensional com um vasto potencial e capacidade de transformação.  É apropriado que este paradigma seja encabeçado pelos povos africanos. Com a nossa visão de mundo completamente negada no paradigma eurocêntrico, nos tornamos vítimas prontas da falsa representação de suas ciências sociais. É dentro da tradição humanista dos africanos que devemos desenvolver um sistema que não só recupera a nossa humanidade, mas oferece a oportunidade de avanço humano para todas as pessoas. 



REFERÊNCIAS 


AKBAR, N. (1980) The evolution of human psychology for AfricanAmericans/ Manuscrito publicado apresentado na SREB Student Conference, Atlanta. 
 ASANTE, Molefi K. (1980) Afrocentricity: The Theory of Social Change. Buffalo: Editora Amulefi. 
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SOBRE O AUTOR 


Na'im Akbar, psicólogo clínico no Departamento da Universidade Estadual da Flórida De Psicologia e Estudos Negros, é um especialista reconhecido no campo da Psicologia negra. Além de sua posição universitária, atualmente ele atua como o  Representante Regional do Sul para a National Association of Black Psychologists no conselho de diretores e é Editor Associado do Journal of Black  Psicology. Enquanto atuou na American Muslim Mission's Human Development como diretor (1975-1977), representou a missão em todo o Oriente Médio, Caribe e Estados Unidos. Ele publicou três coleções de ensaios, intitulados: The Community of Self; Natural Psychology and Human Transformation; and From Miseducation to Education. 

Fonte: Journal of Black Studies, Vol. 14, No. 4 (Jun., 1984), pp. 395-414 
Publicado por: Sage Publications, Inc.

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